Em muitas de suas canções Milton Nascimento vestiu, sem cerimônia, os trajes do viajante. No papel de narradores, os viajantes são aqueles que vêm de longe e têm muito por contar. Enquanto caminham, eles recolheram histórias de lugares perdidos e tempos esquecidos, reunidos em um processo de reinvenção da realidade. Toda viagem envolve estranhamento, aprendizado, descoberta, surpresa e aventura que modificam tanto a fisionomia quanto a alma do viajante. A vida e a obra de Milton Nascimento se confundem com os rumos já percorridos.
Sua música se lança nas mais distantes direções. A pluralidade de experiências e a multiplicidade de sons se tornaram signos presentes em sua trajetória artística desde os primeiros passos. Ainda em 1967, no Festival Internacional da Canção, ele defendeu Travessia, seu primeiro grande sucesso em parceria com Fernando Brant, cujo título é a palavra com que João Guimarães Rosa encerra o romance Grande Sertão: veredas.
O Sertão sem começo e sem fim com as cores e os traços do Geraes, seus relevos, matas, animais e elementos culturais revelam uma paisagem natural, humana e existencial de um Brasil revisitado, reinventado, reconstruído ao longo de várias outras composições nas quais o intérprete de Três Pontas revisitou o escritor de Cordisburgo, como Noites do sertão (parceria com Tavinho Moura) e A terceira margem do rio (com Caetano Veloso). Todo esse cenário foi pensado por Ronaldo Fraga na confecção do figurino utilizado por Milton na sua despedida dos palcos durante a turnê A última sessão de música, que percorreu diversas cidades do Brasil, Estados Unidos e Europa.
No manto criado especialmente para o espetáculo, as estradas de Minas Gerais e outras do país em que se cruzam as canções de Milton Nascimento e a literatura de Guimarães Rosa oferecem o tom, as cores, os traços e desenhos. O estilista e designer de moda Ronaldo Fraga foi também um engenheiro a construir pontes entre as duas linguagens que desafiam o poder da distância física e temporal. A cidade e o Sertão; montanhas, vales e planaltos; as estradas de terra e o curso dos rios; florestas, campos e cerrados; o presente e o passado do Brasil interpretado em canções foi vestido por Milton Nascimento.
A primeira peça da roupa evidencia também em seus desenhos os teclados e do violão, além dos fragmentos das canções que levaram o artista a ultrapassar as fronteiras de Minas e ganhar o mundo. No manto, é possível ler versos de composições como Travessia, Coração civil, Clube da esquina, Tudo que você podia ser e Maria, Maria, de diferentes momentos da carreira do cantor. Elas foram escolhidas por Ronaldo Fraga por serem atemporais em se tratando da convicção em valores, princípios e ideias como liberdade, amizade e esperança, tão caros à Milton em sua visão de mundo e interpretação do Brasil.
O manto (acima à esquerda) possui um céu vermelho vivo com um sol resplandecente a iluminar a vereda azul que se abre entre as montanhas na altura do peito de Milton Nascimento. Seu leito deságua em um cenário multicolorido habitado pela yauaretê (a onça), pela cobra-coral, por pássaros e bois, além, é claro, do trem de ferro, cujo apito é um dos sons prediletos do cantor. Já a peça interna (imagem à direita) utilizada por baixo do manto foi desenhada nos moldes de um fardão na cor do azul intenso das noites misteriosas do Sertão, com sua lua imensa.
Nas palavras do estilista, Milton Nascimento seria uma espécie de “entidade maior” da canção popular, um grande “xamã” e “orixá” da cultura brasileira que deveria se apresentar nos palcos como tal, assumindo a nobreza e a majestade de sua música. Foi diante da missão de vestir uma divindade em sua última aparição para seu público fiel que Ronaldo Fraga aceitou o convite feito por Augusto Nascimento, filho e empresário do cantor. Uma tarefa nada fácil se lembrarmos que “se Deus cantasse, cantaria com a voz de Milton Nascimento”, como definiu Elis Regina com grande propriedade.
Vem daí sua outra inspiração: o “manto da anunciação” com que Arthur Bispo do Rosário (1909/1911-1989) planejou apresentar-se perante Deus para prestar-lhe contas no dia do juízo final com aquilo que ele teria de melhor em sua arte. Após conversas iniciais, Ronaldo Fraga enviou dois livros com as obras do artista sergipano para Milton. A ideia foi aprovada de imediato.
O figurino foi confeccionado com o objetivo lembrar ao público que ele estava perante um ser encantando, imortalizado pela arte. Milton Nascimento subiu ao palco pela última vez em Belo Horizonte, no dia 13 de novembro de 2022. No estádio do Mineirão, transformado em um imenso congá afro-ameríndio, a fragilidade do seu corpo físico é transubstanciada em acordes, arranjos, notas musicais, vocalises, falsetes, versos e melodias. Para Ronaldo Fraga, esse momento não deveria ser vivenciado pela tristeza da despedida, mas comemorado como a aclamação dos grandes reis, a epifania manifesta pela revelação do sagrado seja ele qual for, a percepção intuitiva do poder da natureza incorporado em uma única voz.
Em um tempo em que certos setores da população pouco ou nada afeitos à liberdade, ao pensamento crítico e ao bem comum divulgaram uma visão deletéria da nossa cultura, o encontro entre o cantor e o estilista demonstra a força das linguagens artísticas e sua capacidade de reinventar o Brasil. Em suas estradas, caminhos e encruzilhadas estão a andar Milton Nascimento e Ronaldo Fraga, guiados por Guimarães Rosa e Arthur Bispo do Rosário. O cantor compondo músicas que costuram um país de norte a sul e o estilista tecendo roupas capazes de cantá-lo em alto em bom som.