O texto abaixo foi originalmente publicado como obituário de Pedro Lemebel (1952-2015) na revista cultural ArteZeta e incluído na antologia Cruce de peatones (Ediciones Universidad Diego Portales, 2021), da escritora e jornalista chilena Alejandra Costamagna. A tradução é de Mariana Sanchez.
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DESVIAR DOS MACHINHOS DA ESQUINA
Eu gostava da cara que faziam os alunos quando liam Pedro Lemebel pela primeira vez. Quando o ouviam, na verdade, porque eu levava suas pérolas, suas cicatrizes e seus loucos afãs, e de repente começava a ler em voz alta. Falava por sua diferença, pela diferença de Pedro, pela diferença daqueles colegiais que chegavam às oficinas gratuitas do Balmaceda 1215 procurando um lugar onde afiar suas penas prematuras. Ainda era o século XX e Lemebel movia montanhas com uma fé própria: com o puro tesão de quem defende o que é. Eu me lembro da cara daqueles colegiais quando ouviam que ser bicha e pobre era pior, que era preciso ser ácido para aguentar, e desviar dos machinhos da esquina. Depois, aqueles colegiais se lançavam a escrever e brotavam textos atrevidos, cheios de raiva e de vida. Eu também gostava da cara que faziam outros alunos, filhinhos de papai, de uma oficina literária no bairro nobre. Mas eu gostava dessas caras por outros motivos. Eles ficavam ruborizados com o beijo de Lemebel no Joan Manuel Serrat, com aquela “sede carmesim de uma boca gulosa”. Ou com a imagem de Cecilia Bolocco “caramelizada posando com Augusto”. E se mexiam incomodados em seus assentos com o relato dos saraus literários na casa de Mariana Callejas, “uma inocente casinha de dois gumes onde literatura e tortura coagularam-se na mesma gota de tinta e iodo, numa amarga lembrança festiva que asfixiava as vogais da dor”. Gostava de ver suas caras contrariadas e depois anotando, como quem não quer nada, as informações sobre esse escritor tão sedicioso, tão língua solta, que acabava os enfeitiçando. Lembro da mulher que um dia chegou para a aula com um livro encapado num papel de florzinhas. Perguntei o que ela estava lendo, o que havia debaixo daquela capa. Eram as Crónicas de sidario de Lemebel, que a mulher não se atrevia a levar nuas em pelo dentro da bolsa. Na verdade, me confessou depois, era para que seu marido não a flagrasse lendo aquele escritor viado. Porque a palavra de Pedro Lemebel era uma ferramenta subversiva. É possível ler seus textos, penso hoje, como o retrato fragmentado de um país cheio de fissuras. Lemebel lançava sua voz gay arisca para traçar os contornos de um Chile homofóbico, elitista, segregado. E iluminava as margens que ele conhecia na própria carne e no próprio couro. Ojo de loca no se equivoca: assim assinava a coluna dominical que manteve durante anos no jornal La Nación. E emprestava aqueles olhos de bicha louca para que nós, seus leitores dispersos, pudéssemos olhar o que as luzes e os brilhos de um país cego se esforçavam em esconder. Através de suas crônicas urbanas, Lemebel não apenas apagava as esquemáticas fronteiras entre os gêneros, como revitalizava a literatura local e dava um senso de cidadania às palavras que ele jogava na nossa cara. Não terem lhe dado o Prêmio Nacional é mais uma das injustiças desse Chile doente de consensos e medidas do possível.