interna 2 Karina WEB

O texto a seguir faz parte da seleta Poco hombre, livro que reúne grande parte da produção em crônica do escritor chileno Pedro Lemebel (1952-2015). A obra será lançada pelo selo Zahar, do grupo Companhia das Letras, com tradução de Mariana Sanchez.

 

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AS JOIAS DO GOLPE

E aconteceu num singelo país pendurado na cordilheira com vista para o vasto mar. Um país desenhado no mapa como um fiapo; uma letárgica serpente de sal que um dia acordou com um fuzil na testa, ouvindo um pronunciamento fanho que repetia: “Todos os cidadãos devem se retirar cedo após o toque de recolher e não se expor à turba terrorista”. Ocorreu nos primeiros meses após o 11 de setembro, na folia triunfal da paulada golpista, quando os vencidos andavam fugindo e escondendo gente e levando gente e salvando gente. Alguma cabeça uniformizada teve a ideia de organizar uma campanha de doações para ajudar o governo. A ideia, provavelmente copiada de “E o vento levou” ou de algum panfleto nazista, convocava o povo a recuperar os cofres fiscais colaborando com joias para reconstruir o patrimônio nacional arrasado pela farra esquerdista, diziam as senhoras loiras em seus chás beneficentes, organizando rifas e quermesses para ajudar Augusto e apoiá-lo em sua heroica empreitada. Mostrar para o mundo inteiro que o golpe tinha sido apenas uma tapinha elétrico no bumbum de uma criança manhosa. O resto eram calúnias do marxismo internacional, que invejava Augusto e os membros da junta militar porque souberam ser machos e acabar de uma vez com aquela orgia da ralé. Portanto, se você apoiou a “revolução” militar, pode ir apoiando com um anelzinho, um colar, o que for. Vá logo doando um broche ou as joias da sua avó, dizia Mimí Barrenechea, a emperiquitada esposa de um almirante, a promotora mais entusiasta da campanha de presentes em ouro e platina que recebia os convidados na gala organizada pelas senhoras de azul claro, verde e rosa que corriam feito galinhas chocas recebendo os donativos.

Em troca, o governo militar entregava uma medalhinha de lata pela histórica cooperação. Porque, com o gasto em tropas e balas para recuperar a liberdade, o país ficou na miséria, acrescentava Mimí para convencer as ricaças a entregarem suas alianças de casamento em troca de um anel de cobre que em pouco tempo deixava seus dedos verdes como uma lembrança embolorada de sua patriota generosidade.

Toda a imprensa estava presente naquela cerimônia, embora bastassem apenas o jornal El Mercurio e a Televisão Nacional mostrando os famosos fazendo fila para entregar o colar de brilhantes que a família guardara por gerações feito cálice sagrado; a herança patrimonial que Mimí Barrenechea recebia emocionada, dizendo a suas amigas aristocratas: “isso é que é ser patriota, meninas”, gritava eufórica às mesmas bruacas de cabelo grisalho que tinham ido junto bater panelas em frente aos quartéis, as mesmas que a ajudavam nos coquetéis da Escola Militar, do Club de la Unión ou na própria casa de Mimí, recolhendo a esmola milionária de ajuda ao Exército. Por isso, era um tal de: por aqui Consuelo, por ali Pía Ignacia, matraqueava a senhora Barrenechea, enchendo as cestinhas timbradas com o brasão nacional, e ao seu passo chique e simpático, caíam as bugigangas de ouro, platina, rubis e esmeraldas. Com seu famoso humor pedante, imitava Eva Perón arrancando as joias do pescoço das amigas que não queriam soltá-las. Ai, Pochy, não era você que tinha adorado a revolução? Que aplaudia tomando champanhe no dia 11? Pois então, passe para cá esse anelzinho que parece uma verruga brilhando no seu dedo artrítico. Pode ir passando esse colar de pérolas, querida. Esse mesmo que você está escondendo debaixo da blusa. Entregue para a causa, Pelusa Larraín.

Então, Pelusa Larraín, injuriada, apalpando o pescoço nu que havia perdido aquele colar finérrimo que ela amava tanto, respondeu à Mimí: e você, linda, vai contribuir com o quê? Mimí olhou desconcertada, notando que todos os olhos estavam fixos nela. Ai, Pelu, é que na pressa de organizar essa campanha, acredita que eu tinha esquecido? Pois então dê o exemplo com esse valioso broche de zafira, disse Pelusa, arrancando-o do decote da outra. Lembre-se que a caridade começa em casa. E, com horror, Mimí Barrenechea viu cintilar sua enorme safira azul, presente de sua vovozinha porque combinava com seus olhos. Ao vê-la cair na cesta de donativos, terminou ali o espírito de seu voluntarioso nacionalismo. Mimí entrou em depressão quando viu a cesta se afastar, perguntando-se pela primeira vez o que fariam com tantas joias. Em nome de quem estava a conta bancária? Quando e onde seria o leilão para resgatar sua safira? Mas nem mesmo seu marido almirante soube responder e, olhando-a duramente, perguntou se por acaso ela duvidava da honra do Exército. O fato é que Mimí ficou com suas dúvidas, pois nunca se soube a conta nem quanto foi arrecadado naquela luxuosa vaquinha da Reconstrução Nacional.

Anos mais tarde, quando seu marido a levou para os Estados Unidos por motivos de trabalho e foram convidados para a recepção na embaixada chilena pela recém-nomeada embaixadora do governo militar perante as Nações Unidas, Mimí, de luvas e vestido longo, entrou de braço dado com seu almirante no salão cheio de uniformes que reluziam com medalhas, franjas douradas e condecorações tilintando feito pinheirinhos de Natal. Em meio a todo aquele brilho de galões e emblemas de ouro, a única coisa que ela viu foi um relâmpago azul no cangote da embaixadora. E ficou dura na escada de mármore, puxada pelo marido que lhe dizia entredentes, sorrindo, em voz baixa: o que foi, sua boba? Vamos, que todo mundo está olhando para nós. Mi-nha-sa, mi-nha-safi, mi-nha-safifi, dizia Mimí gaguejando, olhando para a lapela da embaixadora que se aproximava sorridente para dar a eles as boas-vindas. Reaja, imbecil. Qual é o problema?, murmurava o marido, beliscando-a para cumprimentar aquela mulher gloriosa vestida de cetim azul com a joia cintilando no pescoço. Mi-nha-sa, mi-nha-safi, mi-nha-safifi, repetia Mimí, prestes a desmaiar. O que disse?, perguntou a embaixadora sem entender o balbucio de Mimí, hipnotizada pelo brilho do adorno. É que minha mulher adorou o seu broche, respondeu o almirante, tirando Mimí do apuro. Ah, sim, é divino. Foi um obséquio do comandante em chefe, que tem muito bom gosto e me presenteou com dor no coração, porque é relíquia de família, disse a diplomata emocionada antes de continuar cumprimentando os convidados.

Mimí Barrenechea nunca se recuperou desse choque, e naquela noite bebeu todas, até o resto das taças que os garçons recolhiam. Seu marido, envergonhado, teve que levá-la arrastada, porque para Mimí era preciso embebedar-se para suportar a tristeza. Era urgente encher a cara como um gambá para morder a língua e não dizer uma palavra, não fazer nenhum comentário enquanto via, enevoada pelo álcool, o resplendor de sua joia perdida multiplicando os fulgores do golpe.