Um dia Armin estava fazendo carinho em mim com uma canetinha hidrocor, arrastando-a para cima e para baixo no meu braço.
E eu fiquei olhando para aquele homem: ele tem aquele contorno certeiro de quem come pouco e vive errando. Tem todos os músculos desenhados, e uns ossos que pulam aqui e ali e umas veias de Angelina Jolie, grandes, saltadas, coisa de gente que, afinal, não leva uma vida saudável.
Ele tem cor de leite Cilpe com uma gota de café.
Mas, sobretudo (sim, sobre toda ela), ele tem a pele coberta de sinais. De todas as cores – bege-claro, begeescuro, rosa, marrom. Eu gostava de olhar para elas, e entendê-las, como judeu conta a primeira estrela da sexta-feira e agradece que ela está ali. Uma vez eu quis juntar os pontos com a mesma canetinha hidrocor, para ver o que aparecia. E ele disse:
“É a constelação de Andrômeda que vai aparecer”.
O negócio é que sobre esse homem recaía toda minha vontade de ter poesia; todo meu romance. Enquanto a bússola não era inventada eram elas, as estrelas, que guiavam os viajantes. E, como aos navegadores, guiados pelas constelações, a Andrômeda do peito dele guiava meu navegar. Eu passei longos períodos no meio do mar, contando apenas com aquela Andrômeda. Aceitando que ela nem sempre aparecia... E, no fim, oh yeah, fiquei a ver navios (Ah, que engraçada!).
A metáfora da pele de Armin está aí: estava nele minha orientação, meu movimento.
Quando eu dei por mim, virei cartógrafa daquela pele. Repousava sobre Armin, assim, minha inspiração, meu desejo de criar, meu trabalho. Minha câmera, coitada, já não aguentava mais tanta carga emocional. Meu desejo maior era ter, no formato deum álbum de fotografias, um verbo auxiliar para minha memória.
Mas leitorinha, para lembrar de alguém, não se precisa de fotos. Porque a foto carrega em si sua própria praga, que é, na verdade, sua graça: se ela é um auxiliar da memória, e toda memória é uma invenção (diz ela, Lygia Fagundes Telles), essas fotos todas que fiz dele podem evocar qualquer coisa, o que eu quiser. O que eu quiser contar que foi. E todas as fotos só esperam sua vez de ser, por uma legenda, explicadas ou deturpadas, diria Susan Sontag.
E só o fato de você apontar uma câmera em determinadas situações já é acabar com o que ela deveria fotografar: interromper aqueles cabelos, enquanto ele punha a cabeça para fora do carro para sentir o cheiro dos campos de lavanda na Holanda (sim, ele fez isso, e foi lindo, e não tem foto, e eu me lembro de cada detalhe).
Fotografar isso seria um desaforo.
Como um presságio de tudo o que aconteceu entre eu e Armin, em Diante da dor dos outros, Susan fala: “(...) numa imagem uma coisa pode ser bela, de modo como não é na vida real”. Assim, aceitemos: uma foto é uma anotação, é ficção no momento em que existe.
Esse texto inteiro é uma legenda para as 23.094 fotos que fiz deste homem lindo, que anda longe porque eu me movi. Porque, afinal, parei de olhar pro céu e comprei uma bússola. Puxei a âncora, mudei de direção, que meu desejo de movimento é maior que qualquer outro. Ou, como diria Lou Reed: “isso na minha frente não é um muro, é uma porta”(e vai caber minha nau inteira através dela).
Adelaide Ivanova é fotógrafa.