Queria agradecer à La Selva e ao seu letreiro tom vermelho cansado e também a todas as outras livrarias de aeroporto deste país. Pelo que me lembro, em suas prateleiras nunca foi difícil encontrar algum pocket book de Martha Medeiros. Quantas vezes Martha  me ajudou naqueles momentos em que, senhoras e senhores, chegamos ao vácuo – da viagem e da vida. Foi durante um voo meio estranho, daqueles em que era melhor ter ficado embaixo da cama para-todosempre, amém, que ela me ensinou a ter cuidado com pessoas desabitadas, essas aí bonitinhas feito um rótulo de chocolate, sorridentes, mas sem nada por dentro.

“Uma pessoa habitada é uma pessoa possuída, não necessariamente pelo demo, ainda que satanás esteja longe de ser má referência. Clarice Lispector certa vez escreveu uma carta a Fernando Sabino dizendo que faltava demônio em Berna, onde morava na ocasião. A Suíça, de fato, é um país de contos-de-fada, onde tudo funciona, onde todos são belos. Mas falta uma ebulição que a salve do marasmo”, me esclareceu num trecho de uma de suas crônicas. Nunca havia pensado na expressão “habitar” para designar estados de espírito, mas foi bom saber que, às vezes, estamos prestes a virar uma casa abandonada. Resgatei minhas malas, três horas depois, bem mais aliviado.

Numa outra viagem, menos dramática, outro livro me trouxe a grande lição use-se, antes que algum engraçadinho chegue e faça isso por você. Numa crônica, Martha lembra um dia, na praia, quando escutou duas mulheres conversando em tom dramático sobre uma conhecida que, coitada, fora “usada.” Indignada com o tom de coitadinha do diálogo, escreveu: “Use-se para progredir na vida. Alguma coisa você já deve ter aprendido até aqui. Encoste-se na sua própria experiência e intuição, honre sua história de vida, seu currículo, e se ele não for tão atraente, incremente-o”. E mais importante das lições, ao menos para mim: não enviuve-se de si mesmo, ninguém morreu. Se não fosse por Martha, não teria recitado tantas vezes, e com tamanho fervor, o mantra “use-se”. Aeroportos são minas emocionais, onde não sabemos se, após uma despedida, iremos sobreviver à sala de embarque ou se voltaremos para casa com gripe suína ou outra praga típica dos viajantes. Por isso é bom saber que Martha está ali, pertinho!

Ela anda com novo romance, Fora de mim. Estou esperando uma viagem para começar sua leitura – ok, minha atitude pode parecer maniqueísta, mas certos autores e certas experiências exigem ritual, convenhamos... Sei que o livro é sobre separação, então me adiantei e enviei algumas perguntas para ela. “Somos maniqueístas nas separações, temos a tendência de achar que sempre há uma vítima e um carrasco, e o papel de carrasco geralmente é o de quem vai embora. Só que as coisas nem sempre são tão simples. Quem foi embora, quem desistiu, pode continuar amando, só que chegou no seu limite, não tolera mais certas situações. A verdade é que uma relação a dois implica em mil outras coisas além do amor. Isso é o que Fora de mim quer mostrar”, respondeu a mulher que gosta de nos lembrar (e nessa conversa voltou a fazer isso) que “as coisas nem sempre são tão simples” como exigiria o 2 + 2 da razão.

O que me faz um leitor fidelizado de Martha Medeiros é certa voz narrativa onipresente em suas crônicas, poemas e romances que não toma ar de pedagoga, psicóloga ou irmã mais velha. Ela surta, problematiza e leva - fácil - a gente junto. Ler seus livros em trânsito só é recomendável para quem, como eu, acredita que aviões são como aquelas máquinas de transformação, você entra uma coisa e volta outra. Utopia, sim, mas não é para acreditar ou repensar alguma coisa que a gente lê e/ ou viaja? Talvez por isso as livrarias de aeroportos tenham um ethos próprio: há coisas que só lá mesmo!

Nossa conversa por e-mail continuou: “O ‘para sempre’ deixou de ser um objetivo de vida. Hoje as pessoas compreendem que não há como estagnar-se numa situação sem sofrer as interferências da passagem do tempo. Somos mutáveis, e nem por isso somos frívolos. Se duas pessoas que estão juntas vão evoluindo da mesma forma, no mesmo ritmo, pro mesmo lado, é o paraíso. Mas às vezes não acontece assim, cada um se desenvolve por um caminho distinto, e nesses casos é preciso reavaliar: um dos dois estaria disposto a abrir mão dos seus sonhos? Se estiver e isso não for opressivo, tudo bem. Mas, se for, naturalmente eles irão preferir ser amigos e ir adiante sozinhos, dando chance a novas vivências. Sei que, dito assim, parece tudo fácil e asséptico, só que vivenciar essas rupturas é sempre sofrido.”

Sim, rupturas sempre são sofridas, mas ainda bem que nem todas as viagens dependem do “quanto mais difícil melhor” ou de uma alguma passagem traumática escondida no meio do caminho. Mas, se isso acontecer, sempre é possível encontrar algum livro de Martha 15 minutos antes de embarcar. Obrigado, La Selva.