Joao do Rio

 

Mais adiante você lê a crônica Os livres acampamentos da miséria, de João do Rio (1881-1921), relançada no volume Vida vertiginosa. Lançado em 1911 e há anos fora de catálogo, esse clássico do autor acaba de ganhar nova edição pela José Olympio (Grupo Record), com introdução e notas de Giovanna Dealtry (UERJ). 

Como destaca a pesquisadora, Os livres acampamentos da miséria é "provavelmente a primeira crônica a revelar a vida em uma favela à noite". O cronista, encontra, no Largo da Carioca (centro do Rio de Janeiro), um grupo de seresteiros. Juntos, todos seguem para o Morro de Santo Antônio. Lá, João do Rio "oscila entre a atração e o medo, descobre uma comunidade, com regras próprias, esquecida dentro do Rio de Janeiro oficial. Essa crônica é um texto exemplar para nos aproximarmos do jornalista-flâneur, aquele que deambula sem a preocupação do momento seguinte", diz Dealtry. 

Como em outros momentos da obra do autor, o texto mostra sequências de racismo e de preconceito de classe. Esse é um ponto sensível para leitores da obra do autor porque João do Rio não era branco e seu tom de pele não era escuro. Na sociedade da "democracia racial", essa diferença marca(va) o acesso a alguns privilégios. Ainda assim, quando criticado publicamente, João do Rio teve que lidar com falas racistas. "Em uma sociedade construída sobre a tentativa de apagamento do negro, ser mais ou menos branco ou negro era um valor atribuído pelas elites economicamente dominantes e um fator que poderia ser usado contra o 'amulatado' [termo usado contra o autor na época], a depender dos amigos ou inimigos que angariasse", lembra Giovanna Dealtry.

 

***

 

Certo já ouvira falar das habitações do Morro de Santo Antônio,[nota 1] quando encontrei, depois da meia-noite, aquele grupo curioso — um soldado sem número no boné, três ou quatro mulatos de violão em punho. Como olhasse com insistência tal gente, os mulatos que tocavam de súbito emudeceram os pinhos, e o soldado, que era um rapazola gingante, ficou perplexo, com um evidente medo. Era no largo da Carioca. Alguns elegantes nevralgicamente conquistadores passavam de ouvir uma companhia de operetas italiana e paravam a ver os malandros que me olhavam e eu que olhava os malandros num evidente início de escandalosa simpatia. Acerquei-me.

— Vocês vão fazer uma “seresta”?

— Sim, senhor.

— Mas aqui no largo?

— Aqui foi só para comprar um pouco de pão e queijo. Nós moramos lá em cima, no Morro de Santo Antônio…

Eu tinha do Morro de Santo Antônio a ideia de um lugar onde pobres operários se aglomeravam à espera de habitações, e a tentação veio de acompanhar a “seresta” morro acima, em sítio tão laboriosamente grave. Dei o necessário para a ceia em perspectiva e declarei-me irresistivelmente preso ao violão. Graças aos céus não era admiração. Muita gente, no dizer do grupo, pensava do mesmo modo, indo visitar os seresteiros no alto da montanha.

— Seu tenente Juca — confidenciou o soldado — ainda ontem passou a noite inteira com a gente. E ele, quando vem, não quer continência nem que se chame de seu tenente. É só Juca… V. S. também é tenente. Eu bem que sei…

Já por esse ponto da palestra nos íamos nas sombras do Teatro Lírico.[nota 2] Neguei fracamente o meu posto militar, e começamos de subir o celebrado morro, sob a infinita palpitação das estrelas. Eu ia à frente com o soldado jovem, que me assegurava do seu heroísmo. Atrás o resto do bando tentava cantar uma modinha a respeito de uns olhos fatais. O morro era como outro qualquer morro. Um caminho amplo e maltratado, descobrindo de um lado, em planos que mais e mais se alargavam, a iluminação da cidade, no admirável noturno de sombras e de luzes, e apresentando de outro as fachadas dos prédios familiares ou as placas de edifícios públicos — um hospital, um posto astronômico. Bem no alto, aclarada ainda por um civilizado lampião de gás, a casa do dr. Pereira Reis, o matemático professor. Nada de anormal e nem vestígio de gente.

O bando parou, afinando os violões. Essa operação foi difícil. O cabrocha que levava o embrulho do pão e do queijo, embrulho a desfazer-se, estava no começo de uma tranquila embriaguez, os outros discutiam para onde conduzir-me. O soldado tinha uma casa. Mas o Benedito era o presidente do Clube das Violetas, sociedade cantante e dançante com sede lá em cima. Havia também a casa do João Rainha. E a casa da Maroca? Ah! mulher! Por causa dela já o jovem praça levara três tiros… Eu olhava e não via a possibilidade de tais moradas.

— Você canta, tenente?

— Canto, mas vim especialmente para ouvir e para ver o samba. [nota 3]

— Bom. Então, entremos.

Desafinadamente, os violões vibraram. Benedito cuspiu, limpou a boca com as costas da mão e abriu para o ar a sua voz áspera:

O Morro de Santo Antônio
Já não é morro nem nada…

Vi, então, que eles se metiam por uma espécie de corredor encoberto pela erva alta e por algum arvoredo. Acompanhei-os, e dei num outro mundo. A iluminação desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da cidade. O caminho que serpeava descendo, era ora estreito, ora largo, mas cheio de depressões e de buracos. De um lado e de outro casinhas estreitas, feitas de tábuas de caixão com cercados, indicando quintais. A descida tornava-se difícil. Os passos falhavam, ora em bossas em relevo, ora em fundões perigosos. O próprio bando descia devagar. De repente parou, batendo a uma porta.

— Epa, Baiano! Abre isso…

— Que casa é esta?

— É um botequim.

Atentei. O estabelecimento, construído na escarpa, tinha vários andares, o primeiro à beira do caminho, o outro mais embaixo sustentado por uma árvore, o terceiro ainda mais abaixo, na treva. Ao lado uma cerca, defendendo a entrada geral dos tais casinhotos. De dentro, uma voz indagou quem era.

— É o Constanço, rapaz, abre isso. Quero cachaça.

Abriu-se a porta lateral e apareceu primeiro o braço de um negro, depois parte do tronco e finalmente o negro todo. Era um desses tipos que se encontram nos maus lugares, muito amáveis, muito agradáveis, incapazes de brigar e levando vantagem sobre os valentes. A sua voz era dominada por uma voz de mulher, uma preta que de dentro, ao ver quem pagava, exigia logo seiscentos réis pela garrafa.

— Mas, seiscentos, dona…

— À uma hora da noite, fazer o homem levantar em ceroulas, em risco de uma constipação…

Mas Benedito e os outros punham em grande destaque o pagador da passeata daquela noite, e, não resistindo à curiosidade, eles abriram a janela da barraca, que ao mesmo tempo serve de balcão. Dentro ardia, sujamente, uma candeia, alumiando prateleiras com cervejas e vinhos. O soldadinho, cada vez mais tocado, emborcou o corpo para segredar coisas. O Baiano saudou com o ar de quem já foi criado de casa rica. E aí parados enquanto o pessoal tomava parati como quem bebe água, eu percebi, então, que estava numa cidade dentro da grande cidade.

Sim. É o fato. Como se criou ali aquela curiosa vila de miséria indolente? O certo é que hoje há, talvez, mais de quinhentas casas e cerca de mil e quinhentas pessoas abrigadas lá por cima. As casas não se alugam. Vendem-se. Alguns são construtores e habitantes, mas o preço de uma casa regula de quarenta a setenta mil-réis. Todas são feitas sobre o chão, sem importar as depressões do terreno, com caixões de madeira, folhas de flandres, taquaras. A grande artéria da “urbs” era precisamente a que nós atravessamos. Dessa, partiam várias ruas estreitas, caminhos curtos para casinhotos oscilantes, trepados uns por cima dos outros. Tinha-se, na treva luminosa da noite estrelada, a impressão lida da entrada do arraial de Canudos,[nota 4] ou a funambulesca ideia de um vasto galinheiro multiforme. Aquela gente era operária? Não. A cidade tem um velho pescador, que habita a montanha há vários lustros, e parece ser ouvido. Esse pescador é um chefe. Há um intendente-geral, o agente Guerra, que ordena a paz em nome do dr. Reis. O resto é cidade. Só na grande rua que descemos encontramos mais dois botequins e uma casa de pasto, que dá ceias. Estão fechadas, mas basta bater, lá dentro abrem. Está tudo acordado, e o parati corre como não corre a água.

Nesta empolgante sociedade, onde cada homem é apenas um animal de instintos impulsivos, em que ora se é muito amigo e grande inimigo de um momento para outro, as amizades só se demonstram com uma exuberância de abraços e de pegações e de segredinhos assustadora — há o arremedo exato de uma sociedade constituída. A cidade tem mulheres perdidas, inteiramente da gandaia. Por causa delas tem havido dramas. O soldadinho vai-lhes à porta, bate:

— Ó Alice! Alice, cachorra, abre isso! Vai ver que está aí o cabo! Eu já andei com ela três meses.

— Que admiração, gente!… Todo o mundo!

Há casas de casais com união livre, mulheres tomadas. As serenatas param-lhes à porta, há raptos e, de vez em quando, os amantes surgem, rugindo, com o revólver na mão. Benedito canta à porta de uma:

Ai! tem pena do Benedito
Do Benedito Cabeleira.

Mas também há casas de famílias, com meninas decentes. Um dos seresteiros, de chapéu-panamá, diz de vez em quando:

— Deixemos de palavrada, que aqui é família!

Sim, são famílias, e dormindo tarde porque tais casas parecem ter gente acordada, e a vida noturna ali é como uma permanente serenata. Pergunto a profissão de cada um. Quase todos são operários, “mas estão parados”. Eles devem descer à cidade e arranjar algum cobre. As mulheres, decerto também, descem a apanhar fitas nas casas de móveis, amostras de café na praça — “troços por aí”. E a vida lhes sorri e não querem mais e não almejam mais nada. Como Benedito fizesse questão, fui até a sua casa, sede também do Clube das Violetas, de que é presidente. Para não perder tempo, Benedito saltou a cerca do quintal e empurrou a porta, acendendo uma candeia. Eu vi, então, isso: um espaço de teto baixo, separado por uma cortina de saco. Por trás dessa parede de estopa, uma velha cama, onde dormiam várias damas. Benedito apresentou pagamente:

— Minha mulher.

Para cá da estopa, uma espécie de sala com algumas figurinhas nas paredes, o estandarte do clube, o vexilo das Violetas embrulhado em papel, uma pequena mesa, três homens moços roncando sobre a esteira na terra fria ao lado de dois cães e, numa rede, tossindo e escarrando, inteiramente indiferente à nossa entrada, um mulato esquálido, que parecia tísico. Era simples. Benedito mudou o casaco e aproveitou a ocasião para mostrar-me quatro ou cinco sinais de facadas e de balaços no corpo seco e musculoso. Depois cuspiu:

— Epa, José, fecha…

Um dos machos que dormiam embrulhados em colchas de chita ergueu-se, e saímos os dois sem olhar para trás. Era tempo. Fora, afinando instrumentos, interminavelmente, os seresteiros estavam mesmo como “paus-d’água” e já se melindravam com referências à maneira de cantar de cada um. Então, resolvemos bater à porta da caverna de João Rainha, formando um barulho formidável. À porta — não era bem porta, porque abria apenas a parte inferior, obrigando as pessoas a entrarem curvas — clareou uma luz, e entramos todos. Numa cama feita de taquaras dormiam dois desenvolvidos marmanjões, no chão João Rainha e um rapazola de dentes alvos. Nem uma surpresa, nem uma contrariedade. Estremunharam-se, perguntaram como eu ia indo, arranjaram com um velho sobretudo o lugar para sentar-me, hospitaleiros e tranquilos.  

— Nós trouxemos ceia! — gaguejou um modinheiro. Aí é que lembramos o pão e o queijo, esmagados, amassados entre o braço e o torso do seresteiro. Havia, porém, cachaça — a alma daquilo — e comeu-se assim mesmo, bebendo aos copos o líquido ardente. O jovem soldadinho estirou-se na terra. Um outro deitou-se de papo para o ar. Todos riam, integralmente felizes, dizendo palavras pesadas, numa linguagem cheia de imprevistas imagens. João Rainha, com os braços muito tatuados, começou a cantar.

— O violão está no norte e você vai pro sul — comentou um da roda.

João Rainha esqueceu a modinha. E, enquanto o silêncio se fazia cheio de sono, o cabra de papo para o ar desfiou uma outra compridíssima modinha. Olhei o relógio: eram três e meia da manhã.

Então, despertei-os com três ou quatro safanões:

— Rapaziada, vou embora.

Era a ocasião grave. Todos, de um pulo, estavam de pé, querendo acompanhar-me. Saí só, subindo depressa o íngreme caminho, de súbito ingenuamente receoso que essa “tournée” noturna não acabasse mal. O soldadinho vinha logo atrás, lidando para quebrar o copo entre as mãos.

— Ó tenente, você vai hoje à Penha?[nota 5]

— Mas nem há dúvida.

— E logo vem ao samba das Violetas?

— Pois está claro.

Atrás, o bolo dos seresteiros berrava:

O Morro de Santo Antônio
Já não é morro nem nada…

E quando de novo cheguei ao alto do morro, dando outra vez com os olhos na cidade, que embaixo dormia iluminada, imaginei chegar de uma longa viagem a um outro ponto da terra, de uma corrida pelo arraial da sordidez alegre, pelo horror inconsciente da miséria cantadeira, com a visão dos casinhotos e das caras daquele povo vigoroso, refestelado na indigência em vez de trabalhar, conseguindo bem no centro de uma grande cidade a construção inédita de um acampamento de indolência, livre de todas as leis. De repente, lembrei-me que a varíola caíra ali ferozmente, que talvez eu tivesse passado pela toca de variolosos. Então, apressei o passo de todo. Vinham a empalidecer na pérola da madrugada as estrelas, palpitantes, e canoramente galos cantavam por trás das ervas altas, nos quintais vizinhos.

 

NOTAS 

[nota 1] O Morro de Santo Antônio ocupava a área entre as ruas do Lavradio, Evaristo da Veiga, da Carioca e o Largo da Carioca. Seu desmonte definitivo ocorreu nos anos de 1950, dando lugar às avenidas Chile e República do Paraguai. As terras do morro foram usadas para aterrar parte da Baía de Guanabara.

[nota 2] O Teatro Lírico situava-se na atual rua Treze de Maio. Foi demolido em 1932.

[nota 3] O termo samba, aqui, faz referência à festa, e não ao gênero musical. Só na década seguinte ele passaria a ser associado à música. 

[nota 4]  Referência ao Arraial de Canudos, localizado no interior da Bahia e onde ocorreu a Guerra de Canudos entre os anos de 1896 e 1897. A associação entre o Morro de Santo Antônio e Canudos também indica a popularidade do livro Os sertões, de Euclides da Cunha, publicado em 1902.

[nota 5] Referência à festa na Igreja Nossa Senhora da Penha. No início do século XX, era ponto de modinheiros. Foi duramente perseguida pela polícia e pelos cronistas da época.