Chegava sempre entre 16h45 e 17h15. Mesmo desejado aos domingos, só aparecia nos dias úteis. Bigodes fartamente portugueses, sem qualquer barriga de meia idade, pedalava com a elegância de um nijinski placidamente suburbano. Uma espécie de cavaleiro sobre a barra-forte. Tão logo afrouxava o elástico ao redor da lona sobre a caixa plástica, encostávamos, sacolas em punho, mães e empregadas contando moedas. Grande era a disputa pelas maiores crostas de coco caramelizado naqueles enormes, quadrados e massudos pães doces. São as madeleines possíveis em nossa busca cabocla pelo tempo caboclamente perdido.
Dizem que foi um sogro guloso de Luiz XV quem obrigou uma certa cozinheira, numa madrugada francesa qualquer, a improvisar esses bolinhos assados com limão. Açúcar, bem antes de Proust enxergar numa dessas madeleines uma fenda de volta à infância, tem sido sinônimo de afeto, afeto na boca. Açúcar é sina, respaldo, felicidade e maldição.
Freyre nos disgnosticou: “Sem açúcar, não se entende o homem do Nordeste”. O pó doce e açucarado de cana sacarina viabilizou as barbas portuguesas sobre as peles imberbes tupy, patrocinou o projeto colonizador que resultou no Brasil, fundiu Oriente e Ocidente, arredondou senhoras e mancebos, destruiu dentes e matas em Maranguape, escravizou africanos, nos ensinou a sambar, fez umas gatinhas se livrarem da calcinha no primeiro boogie woogie do meu coração e até colocou James Dean na moto. Sim, a mesma goma de mascar usada para aliviar tensões pelos soldados americanos entre um companheiro morto ou um inimigo esmigalhado estava na boca do nosso angelical selvagem da motocicleta.
Com o chiclete, o açúcar ganhava sua superlativa democratização no século 20, o doce em última instância pop. “Sua história começa em Nova Iorque, na loja de um homem chamado Thomas Adams”, registra a jornalista Lucrecia Zappi, no recém-lançado Mil-folhas, mais uma publicação-fetiche da Cosac & Naif. Numa linguagem direta e didática, quase almanaque, o vistoso livrinho nos oferece uma história ilustrada do doce. Artigo de botica, tão raro e caro, o açúcar dos primeiros tempos era um valiosíssimo tempero que constava, até mesmo, nos baús e dotes de casamento. Foi sua ligeira adaptação ao massapê nordestino depois de um estágio na Ilha da Madeira o que fez da cana a razão para que os portugueses ficassem nessas praias com suas botas, piolhos e apetites. Açúcar é lastro.
Ele pode ser clássico, opulento, cativante, barroco, chique ou vulgar, quase sempre ancestral. Mas poucas formas, como dissemos, o tornam tão pop quanto o chiclete. Foi, aliás, o homem que o inventou que garantiu à embalagem lugar de destaque na história do design no século 20. “Foi exatamente em 1869 que um homem velho e meio surdo bateu à porta da loja. Entrou e foi logo dizendo que não estava interessado em comprar nada mas, como tivesse ouvido falar no espírito criativo de Adams, viera lhe propor um negócio”, diz a autora.
O homem corpulento de pesado sotaque mexicano tinha nas mãos um pedaço de resina. Era o general Santa Anna, ex-presidente e líder de grandes exércitos no México. Depois de tanto tumulto por ele provocado, acabou exilado nos Estados Unidos. “O que eu quero com o senhor, seu Adams, é desenvolver um grande produto com esta resina, que é muito resistente, extraída do sapotizeiro há milênios por povos do país, os maias e os astecas”, reproduz a autora. Em náuatle, a resina chamava-se chictli. Os gregos gostavam de limpar o hálito com resina de aroiera. O general nunca mais apareceu. Mas Adams tentou produzir pneus com a resina. Como se fosse mole demais, tentou com ela reproduzir a goma de mascar normalmente feita com cera de abelha. Logo, a goma estava em pequenas tiras, adoçadas, saborizadas artificialmente e mercadas em máquinas de moeda. “O chiclete número um de Nova Iorque é Adams, ele estala e estica”: Só anos depois, os concorrentes conseguiram a proeza da bola.
No Recife, chicletes vieram às turras com os refrigerantes e outras bebidas finas trazidas nas malas dos americanos escalados para as bases militares do Nordeste na Segunda Guerra. Em vez de irem aos campos, alimentaram a economia do sexo e da noite nos velhos sobrados. Dona Julieta, antiga e gloriosa prostituta da rua da Guia, masca seus chicletes até hoje. Gosta muito de hortelã, mas não dispensa tutti-fruti.
Bruno Albertim