Uma mulher foi vista em público chupando mangabas. Dizem que em avenida de grande circulação. Não trazia xale sobre os ombros. O corpo cobria com tecidos sóbrios. Não gostava de estampas. Conservava a elegância limítrofe dos que pouco têm para ostentar além de si próprios. Trazia a boca ainda viçosa, plena de carnes, apesar dos quase 50 anos de frutas abertas, descascadas, despidas de espinhos e sementes, chupadas das mais diversas formas. Muitas vezes, em público. Conservava alguns, mas aprendera a livrar-se de vários de seus pudores. “Pudores”, pensava ela, “são como o visco da mangaba: grudam, excitam, mas atrapalham o acesso ao sumo”.
Não pensava na família. Esquecia-se de si enquanto o látex aderente lhe temperava as mucosas. Adulterava a natureza da boca com o sêmen vegetal, viscoso e rarefeito como certos boleros. A mangaba - não se pode esquecer - carrega em si a lembrança do primeiro âmbar. Trazida dos arbustos ou da feira, a fruta, se bem percorrida com a língua, vale por um breve manual de masturbações, música atemporal e outras artes manuais. A mangaba não respeita o chinoix. Mangaba é para quem já esteve lá.
Comungava do sentido primeiro da fruta. Antes dos espelhos, galinhas, piolhos e varíolas, as nações tupi, na ausência de mais a mais, chamavam a frutinha de “coisa boa de chupar”. Semântica que se encaixa perfeitamente em seu batom fortemente úmido e marrom. Um prazer, entretanto, ameaçado. E não por terremotos, síndromes de pernas inquietas ou outras epilepsias sísmicas em voga no cone sul - até Caruaru tremeu. Mangabeiras são plantas indóceis, impróprias para salões e saraus. Não se deixam trocar ou vender por miçangas. Como não permitem anexação, estão ameaçadas. Possuem sementes recalcitrantes. Não suportam ressecamento.
Antes, elas eram convertidas em canaviais e coqueiros. O mesmo aconteceu aos cajus primevos. Hoje, são transformadas em fazendas aquáticas onde peixes não entram, alevinos estão intoxicados e de onde os camarões saem embalados a vácuo. As mangabeiras também costumam ser sepultadas para fins mais nobres, empregos gerados e alegrias familiares. Viram condomínios, resorts plenos de crustáceos fritos e pousadas que sonham com um selo Relais & Chateau. Nunca conseguirão. Serão obrigadas a receber as hordas carregando sacolas e bonés com a logomarca de qualquer operadora em 12 vezes fixas.
Eles jamais pedirão um suco de mangaba. Está nos relatórios: mais de 90% dos territórios nordestinos ocupados originalmente pelas frutinhas já foram extintos. Cerrados, tabuleiros e restingas não são os mesmos. Mas as academias confirmam os pregões dos mercados: mangaba diminui hipertensões, colesterol e diabetes. Os postigos são maiores que as janelas.
Aos que não a conhecem, as instruções elementares: as frutas não devem ser ceifadas diretamente do pés. É preciso paciência de escafandrista e esperar que caiam sob a sombra rendada dos galhos. Mas não tanta. Mais de três horas, já terão passado do ponto ideal. Abandonam a maturidade.
Com golpes seguros porém delicados da língua, as frutas devem ser conduzidas, uma a uma, para o interior do palato. Serão alguns segundos até que as sementes sejam expelidas pelos lábios ligeiramente arqueados. É preciso sobriedade. Deve-se evitar reações ruidosas e contorções extraordinárias nos músculos da face. O olhar não deve ser alterado.
Ela sabia disso. Mas já não desfere a mesma importância. Dizem que é a última mulher a chupar mangabas no Nordeste.
Mangaba é para quem já esteve lá
- Detalhes
- Categoria: Crônica