Afinal, quem é o vampiro? Talvez seja a pergunta mais imediata que faz o leitor ao concluir o livro Chá das cinco com o vampiro – talvez romance – do escritor paranaense Miguel Sanches Neto, publicado pela editora Objetiva. E não é para menos. Dentes afiados e garras de navalha, ele tentou a todo custo beber o sangue do personagem central, Geraldo Trentini, inspirado no ficcionista Dalton Trevisan, durante muito tempo chamado de O “Vampiro de Curitiba”, por muitas razões.
Ocorre que em Dalton o apelido é charmoso também pelos hábitos inusitados que tem: vive recluso, não concede entrevista, não se deixa fotografar, e apenas passeia em fins de tarde por ruas da capital do Paraná comparecendo, às vezes, a uma livraria. Não podia ser mais chique, não é? E, claro, mais provocador. Quem não gostaria de conhecer as firulas espirituais e intelectuais de um homem desses, vivendo nessa espécie de solidão habitada. De quebra ainda publica livros intrigantes, onde personagens, homens e mulheres, se dilaceram em paixões nunca correspondidas, aos estalos de beijos e de canções proibidas?
O livro é novidade para todos nós, brasileiros afastados do Sudeste e de Sul, mas nas rodas literárias já era comentado, a ponto de o próprio Dalton Trevisan ter sido obrigado a sair do seu silêncio de claustro, para escrever um poema em que chamou o autor de “hiena papuda”. E a tensão se estabeleceu, num caso não muito comum na literatura brasileira que, verdade seja dita, é quase sempre muito bem comportada. Não temos tradição de grandes polêmicas, a não ser no século 19, caso das críticas ácidas dos desafetos a Machado de Assis.
Miguel atirou a seta no círculo. E acertou. Ou ouviu alguém gritar: “Bingo”. Quer dizer, acertou e bingou de acordo com o seu código de ética. E nem sempre o código de ética literária está longe do código de ética pessoal. Ambos se entendem e se misturam. E serve para aquela máxima que escutei muito durante minha vida: “A gente vale pelo mal que a gente faz”. Incrível. Mas o mundo está cheio dessas hienas, que afundam a mandíbula nos nossos pescoços e que se comprazem numa gargalhada de ferir palhaço.
Sanches aproximou-se de Dalton, mudou de cidade, de hábitos e de alma. Há uma frase lapidar – lapidar é demais, muito demais, hein? – de Céline, o escritor francês, que diz assim: “Há pessoas que mudam de alma para enganar melhor”. Outras nem precisam disse, seguem o destino que a vida lhes deu. E aconteceu dessa forma, sem tirar nem por: Mudou de alma para vasculhar a vida desse homem cheio de segredos. Não demorou, colocou tudo nas vitrines das livrarias. Exposição permanente e cruel. E bem que poderia ser um ótimo livro de formação. Existem tao poucos romances de formação no Brasil, que serviria, pelo menos, para examinar os dilemas e as glórias de uma geração, ou de muitas gerações, que atravessam as décadas tentando entender para que serve mesmo a literatura. E por que estão escrevendo. O melhor exemplo disso é, sem dúvida, Encontro marcado, de Fernando Sabino.
Nas páginas deste livro muitos outros personagens da realidade curitibana – ou de Londrina, onde mora o escritor – trafegam. Ora com ironias, ora com revelações bobas, ora com ofensas desvairadas. E a quem interessam os hábitos de cada um deles? Pode-se dizer, hábitos pessoais, detalhes que a eles mesmo, e somente a eles, interessam. Não cabem sequer num romance. E Beto – o alter-ego do autor – começa a desvendá-los sem nenhum pudor. Sem qualquer pudor. Oferece roteiros, pequenas manias, gestos. Parece seguir outra máxima, essa máxima sertaneja: “Não quero saber se a mula é manca, eu quero mesmo é rosetar”.
O romance vai se transformando, pouco a pouco, num amontoado de revelações que não enriquecem, de forma alguma, a obra de Miguel. Que, é preciso ressaltar, estava construindo uma obra respeitável, junto ao trabalho de crítico e de professor. Mas preferiu seguir uma certa tradição de norte-americana, que tem em Truman Capote um dos seus cultores. Logo Truman Capote que é aquilo que se pode chamar de um escritor de estilo – se isso existe mesmo. Sem esquecer, porém, que depois dos seus trabalhos de fofoca, ele desapareceu. Sumiu. Não escreveu a obra de quem se esperava tanto. Desde Bonequinha de luxo.
Agora, o vampiro perde a sua classe curitibana, seu charme cinematográfico, para percorrer o país na capa de um livro que pode atacar a qualquer momento. Transformado numa xícara de chá. E do alto das nuvens e dos tremores de terra se ouvirá a sentença: “O vampiro sou eu”.
Cada um tem o vampiro que merece
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- Categoria: Crônica