Surgiu um tom político nos textos ou subtextos da literatura brasileira produzida nos últimos dois anos. Pelo menos, em parte dela. Ninguém mais consegue ficar imune ao Brasil, aos escândalos de corrupção, às denúncias, ao povo amotinado e à enxurrada de agressões pela internet. O ódio escancarou suas portas, amizades se transformaram em desafetos. Alguns insanos até desejam o retorno de um regime de força, a ditadura militar. Os místicos falam em kali yuga. Jornalismo e ensaios sobre a crise são mais lidos do que romances, novelas ou contos. O real extrapolou a imaginação. Fiéis à crença de que o autor busca se comunicar com o seu tempo e a realidade, os ficcionistas brasileiros, que antes viajavam pelos mais insólitos lugares à cata de inspiração para os romances, procuram agora retratar o momento do país em que moram ou nasceram.
Mas não era esse o tom até que surgissem os movimentos de rua de 2013. Prevalecia uma literatura anódina, alheia à panela de pressão prestes a explodir. A literatura e a música de caráter político produzida na Ditadura Militar, e nos anos imediatamente após, se esgotara ou fora rejeitada como carne de terceira. Dava a impressão de que a ferida havia sido milagrosamente curada, sem deixar sequelas. Novamente, anos dourados. Mas as pessoas finalmente saíram às ruas, estiveram lá fora, quebrando e protestando. A onda foi considerada apartidária, talvez anárquica e caótica, culminou na transformação do balanço de forças direita e esquerda em dicotomia direita e extrema direita, com assustadora prevalência da segunda.
Em 2012, um ano antes das marchas incendiárias, publiquei Estive lá fora, um romance que vinha escrevendo há algum tempo, se assumia como texto político não panfletário e pensava o agora brasileiro na perspectiva do passado recente, a ditadura militar. No Brasil, ao contrário da Argentina, em seguida à anistia e às eleições diretas, as pessoas rapidamente esqueceram as sequelas dos anos de repressão. Talvez, elas ainda nem enxerguem um nexo entre os acontecimentos recentes e o passado próximo. Tendemos a recusar a política, a não pensar politicamente. E por conta dessa cultura, Estive lá fora foi considerado um romance desnecessariamente forte, violento, abordando feridas saradas, dores esquecidas. Um ano depois de publicado, tudo o que eu traçara na literatura se revelou de forma igualmente violenta.
Em Estive lá fora, como em Galileia, trato de famílias. Embora quase todas as cenas transcorram no Recife, a trama também remete ao sertão dos Inhamuns. Dessa maneira, mantenho os vínculos com a paisagem de meus livros anteriores. O sertão alimenta o imaginário do personagem Cirilo, irmão de Geraldo; os antigos crimes da família o atormentam e o fascinam para a morte. Não escrevi um romance sobre a ditadura militar – embora ela apareça em imagens de fundo –, mas sobre pessoas que padecem de insegurança e medo em tempos sombrios. Geraldo ingressou num partido político de esquerda e prega a luta armada. Cirilo, seu irmão mais novo, veio morar no Recife para estudar medicina e, a pedido da mãe, vigiar o irmão. Atormentado e contraditório, Cirilo é incontido no seu amor romântico pela verdade e pela ética. Seria o mesmo perplexo diante dos acontecimentos que nos encarceram.
Tentei recriar a atmosfera de horror do final da década de 1960, quando as medidas provisórias e os atos institucionais haviam limitado os direitos civis e a liberdade de expressão. Nada diferente de agora, apenas sem os disfarces da legalidade. Os poetas e escritores são visionários, espécies de profetas. Em Estive lá fora, mesmo sem provas, denuncio que havia no Campus da Universidade Federal de Pernambuco uma célula de repressão e tortura aos estudantes. Isso se confirmou recentemente, através das investigações da Comissão da Verdade. Também profetizamos como a Cassandra, filha do rei Príamo de Troia, a que tinha o poder de adivinhação, mas em quem ninguém acreditava.
Estive lá fora acabou sendo um romance premonitório. O que se passa no final da década de sessenta e início dos anos setenta acontece hoje. A mesma intolerância entre as classes sociais, a indiferença pelos menos favorecidos, a insegurança no futuro, a descrença nos modelos políticos, a depressão, o niilismo, o medo, o absurdo, o horror. Os artistas são desagradáveis ao poder por conta da virulência de suas metáforas. Estive lá fora se tornou uma metáfora dos tempos que vivemos. Uma premonição ou um insight sobre a sombra que nos ameaça e que nenhum vento promissor tange para longe.