1. Minha mãe me levou ao cinema pela primeira vez para ver O último imperador, de Bertolucci, no cine São Luiz. Eu tinha cinco anos. Na época, meus amiguinhos se estapeavam na fila do cinema pra ver os Trapalhões, comer pipoca murcha e Coca-Cola sem gás naqueles copos de papelão fino, no Cine Recife 3. E eu me deparava com os dramas de um príncipe suicida da dinastia Qing.
Minha mãe também me punha pra assistir, na mais tenra idade, O céu que nos protege, A insustentável leveza do ser e um monte de outros títulos pouco apropriados para pessoas com menos de (sei lá) 26 anos.
E aí, quando eu fiz 19 anos (em 2001), ela me deu um exemplar de Os irmãos Karamazov. Dostoiévski. Mesmo eu, com toda a prepotência de quem já tinha lido Kafka aos 16 (e nada entendido, mas ninguém precisava saber), achei aquilo demais para minhas ambições literárias. Eu precisava mesmo ler algo escrito 121 anos antes e que tinha 743 páginas?
Mas é que foi dele que saiu meu nome. E foi em 2001 que eu entrei na faculdade. Então pareceu adequado, para minha mãe feminista e intelectual, que sua filha entendesse pelo que ela própria passou enquanto estava grávida. De certo, ler Dostoiévski durante uma gravidez deve mexer com os miolos dos envolvidos (both gestante e feto).
A personagem que me deu meu nome é uma personagem-chave no enredo. Chave de cadeia, pra ser bem clara.
É assim que ela é descrita, na página 2: “(...) Adelaide Ivânovna, mulher arrebatada, atrevida, morena irascível, dotada de estupendo vigor”.
Eu me apaixonei um pouco mais por mim mesma quando li isso. E olhe que me apaixonar por mim mesma é fácil, sendo leonina. Assim como difícil é, com essa autoestima de Opus Dei, acreditar nos elogios. E essa dicotomia a Adelaide Ivânovna do livro também traz.
Ela só aparece no primeiro capítulo. Abandona marido e filho e foge com o amante. Nunca mais será citada de novo, mas aparece nas entrelinhas até a última página, como sendo a raiz de todo o destrambelhamento dos Karamazov.
A relação que Dostoiévski constrói com ela é a mesma que eu venho levando comigo mesma há infernais 27 anos. Adelaide é a musa da coragem e da paixão (ao largar um marido suado e gordo e uma vida morgada numa cidadezinha da Rússia pra ir atrás do bofe que ela gostava). Por outro lado, ela magoou algumas pessoas ao fazer sua escolha. Dostoiévski, para ajudar a gente a tirar uma conclusão sobre ela, decidiu que não bastava que ela abandonasse o marido – ela tinha que deixar pra lá também o filho.
É engraçado: pai que abandona a família tem assim no mundo, ó, e ninguém se importa muito. Mas basta uma mulher decidir que não vai criar um filho, para todo mundo apontá-la como a bruxa do 71.
Mas o que eu tenho a ver com isso, além do nome igual? Nada que não é.
2. Dostoiévski apareceu na minha vida na mesma época que Pedro*. Eu lia pra ele pedaços d’Os irmãos Karamazov e ele citava esses cantores cult tipo Jorge Mautner. E eu fingia que gostava, porque ele era tão bonito! Um dia a paixão passou, sei la eu porquê (a gente nunca ficou, na verdade). E eu continuei acompanhada do meu russo e nem sofri (muito).
Em todos os namoros que eu tive, Dostoiévski deu um pitaco, dizendo coisas como “Ela estava sentada no chão, a cabeça reclinada sobre a cama, e provavelmente chorava. Mas não ia embora, e justamente por isso é que me irritava”. Muitas vezes, ele me lembrou que tem horas que o romance deve ser entregue ao editor sem final feliz, mesmo. E aí é hora de começar a escrever um novo.
No fundo, eu sempre quis me igualar a Sonia, a mocinha de Crime e castigo que representa a redenção do frouxo Ródia. Também, né, leitora, contando a quantidade de geminianos malucos, cancerianos com distúrbios de ambição e piscianos bígamos que eu aguentei na minha vida, eu bem que merecia uma estátua na praça vermelha. Santa Adelaide da Paciência Sem Fim.
3. Armin* me disse que uma das primeiras coisas que ele fez, quando voltou à Colônia depois de me conhecer em Lisboa, foi ir a uma livraria, ler a descrição de Adelaide Ivánova em Os irmãos Karamazov.
E aí?, perguntei. É você, ele respondeu.
A metáfora triste desse elogio é que eu, como minha xará, também tive que ir embora. Não que Armin fosse suado e gordo. Não que eu não quisesse ficar. Mas, confesso, nunca entendi muito bem porque peguei aquele avião.
Dostoiévski não deixa claro que fim Adelaide levou. Mas às vezes eu sinto que sou eu quem paga pelos pecados cometidos por ela.
4. Esses dias, depois de uma longa troca de e-mails sobre as decisões que tomei na vida, ele me mandou uma letra de música de uma cantora indie que não vou dizer o nome porque tenho vergonha:
“Se o tempo tivesse lugar e espaço para seu passado, como uma pequena novela que eu ia querer ler de novo e de novo, estaria eu na sua novela? Eu ia aparecer nela do começo ao fim?”.
5. Não. Quem diria que
meu namorado mais longo ia ser um russo velho, epilético, antissemita e viciado em jogo. É que o amor é cego e eu tenho talento pra cão-guia.
*e estes nomes não foram modificados.
Eu amo meu Dostoiévski
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