Por Pedro Lemebel. Tradução Alejandra Rojas
Quem poderia pensar então que você seria uma alma penada pelo resto da minha vida, como uma música boba, como uma canção vulgar, daquelas que as tias solteiras e as mulheres bregas escutam. Canções que embalavam os folhetins que uivavam em algum programa radial. Era tão estranho que você gostasse dessa melodia água com açúcar, você, um garoto daquela escola pública onde cursávamos o ensino médio em pleno governo da Unidade Popular. O mais estranho era que, mesmo eu sendo nitidamente bicha, você era o único que me dava bola no meu canto, no pátio, expondo-se às burlas. “Pois a cidade sem você… Está solitária”, não deixava de cantarolar com esse riso tristonho que eu evitava compartilhar para não o comprometer. Há pouco tempo, depois de tantos anos, voltei a ouvir essa canção e percebi que, naquele então, o que eu admirava era sua candura revolucionária, amava seu alegre compromisso, que se enfureceu tanto, quando soube que os fascistas iriam destruir o mural da Ramona Parra1, na fachada da escola. É preciso fazer guarda a noite toda, você disse, mas ninguém deu ouvidos porque no dia seguinte haveria prova.
Mas que importância tinha a prova? Foda-se, eu fico cuidando do mural do povo. Eu também não me importei com a prova e fugi de casa à meia-noite para ir até a escola, onde achei você encolhido, empunhando um toco de madeira, montando guarda sob o mural de pássaros, punhos em alto e bocas famintas. “Pois a cidade sem você…”, você riu surpreso de me ver e abriu um espaço para que sentasse ao seu lado. Você não acreditava, me olhava e cantava “todas as ruas estão cheias de gente e pelo ar soa uma música”. Vim te fazer companhia, companheiro, falei trêmulo de timidez. Bem-vinda seja sua companhia, companheiro, você respondeu, passando-me o cigarro quase consumido pela tua boca suculenta. Não fumo, respondi com pudor. Naquela época, não fumava, não bebia, não cheirava, só amava com a fúria apaixonada dos 16 anos. Podem vir esses fascistas. Você não tem medo? Respondi que não, tremendo. É por causa do frio, esta noite está gelada. Você não acreditou e, mesmo assim, enlaçou seu braço nos meus ombros com um cálido aperto. “De noite, saio com alguém para dançar, nos abraçamos cheios de felicidade… mas a cidade sem você…”. Era estranho que você cantasse essa canção e não as de Quilapayún ou de Victor Jara que seus colegas do partido entoavam com o violão. Você cantava devagarzinho, baixinho, como se temesse que alguém pudesse ouvir. Não sei, era como se você cantasse só para mim. “Pois a cidade sem você…”, sussurrava cada letra no mormaço daquela tensa noite de vigília. Quase não sentia frio ao seu lado, e falando assim, devagarzinho, de tantas coisas, de tanto ingênuo sofrimento, fui relaxando, adormecendo em seu ombro. Mas o pavor me cortou a respiração ao ouvir passos na rua. Não se mexa, você me sussurrou ao ouvido, segurando o garrote. Podem ser esses fascistas. E permanecemos assim juntinhos, com o coração em dueto, fazendo um tum-tum expectante. Mas não eram os fascistas, porque as pisadas perderam-se, ressoando, na concavidade da rua. E ficamos novamente, sozinhos em silêncio. “E no ar se escuta uma música…”, você cantou novamente em meu ouvido e assim passaram as horas e no dia seguinte tiramos má nota na prova e vieram os exames de fim de ano e os tempos de escola rodaram turbulentos em marchas por Vietnã e reuniões apoiando o presidente Allende. Logo a música parou de repente, veio o golpe militar e sua brutalidade me fez esquecer aquela canção.
Nunca soube nada de você. Passaram os invernos de tormenta enchendo o Mapocho2de cadáveres com um tiro na testa. Passaram-se os invernos aquecidos à base de querosene e a TV ligada em Don Francisco3e sua musiquinha burlesca acompanhando indiferente o cortejo fúnebre da pátria em ditadura. Tudo assim, com show importado, com bailarinas peitudas no colo dos generais. A única música que ressoava no toque de recolher era a dos programas de fofoca das celebridades “milicas” na TV.
Nunca mais soube de você, talvez escondido, arrancado, torturado, trucidado ou desaparecido no pentagrama impune e sem a música do luto pátrio. Alguma coisa me diz que foi assim. Santiago é uma esquina, Santiago não é mundo; aqui, algum dia tudo se comenta, tudo se sabe. Por isso hoje, ao ouvir essa canção, canto-a sem voz, só para você, e caminho pisando nos charcos do parque. Este inverno vem duro, cai a tarde outonal refletida no céu das poças. Aglomeração de carros que buzinam nos semáforos. Os estudantes vão e vem com suas toucas de lã para aguentar o frio e os protestos. Os santiaguenses se amontoam nos pontos do metrô, em massa, em tumultos, numa multidão alvoroçada que enche as ruas. “Mas a cidade sem você… meu coração sem você…”.
1 Nome de um grupo de artistas, especialistas em murais, do Partido Comunista do Chile. O nome homenageia a jovem militante assassinada durante um protesto em 1946.
2 Rio que nasce nos Andes e atravessa a cidade de Santiago.
3 Referência ao programa de variedades Sábado Giganteque se transmite no Chile aos sábados à tarde desde o ano de 1965.