De todos os tipos de escritor, o cronista é o que mais depende da gentileza de estranhos. Comigo é assim, não vou negar, mas finjo alguma autonomia. Faz parte do jogo literário, manter a pose independente. Uma vez, Rubem Braga relacionou o cronista a um cigano sem-teto, e lembro que aquilo me caiu bem. Ele disse que certos autores constroem casas imensas, sólidas, e nelas se estabelecem. O cronista não; ele arma sua tenda toda a noite e, pela manhã, já precisa desmanchá-la, jamais se assenta, tem que seguir viagem rumo a um novo anoitecer.
Bonita analogia. Também tenho aqui a minha barraca de lona vagabunda, mas, sem querer compará-la à do Braga, sei que, no duro, as coisas não são assim. Não somos bem ciganos, ninguém pode nos chamar de nômades, peregrinos ou andarilhos. Estamos sempre aqui, fixos, nas fundações do nosso jornal, da nossa revista, nas nebulosas da internet. Na real, montamos e desmontamos sempre a mesma tenda, e no mesmo terreno baldio. O que muda são os dias, o clima, o céu. Mas a loucura deste montar e desmontar não varia nunca, é ela que nos caracteriza. O absurdo é a estrada por onde avança toda a humanidade, mas é a própria casa do cronista.
Acho que temos mais em comum com as ciganas. Sim, andamos por aí à caça de homens e mulheres de boa fé. Caprichamos na fantasia, exibimos um duvidoso mostruário de acessórios, este festival de penduricalhos espelhados e dentes de ouro, armadilhas de lógica e estilo. Abusamos do kajal nos olhos, dos cílios postiços e das verdades postiças, das sombras e dos lenços floridos. Mas nada disso é gratuidade ou pompa, é apenas o teatro das ruas. Às vezes até podemos resvalar em alguma frivolidade, mas e daí? Nenhum texto prescinde de sua camada de maquiagem, e mesmo a cara limpa é também uma máscara, tudo no rosto humano é linguagem.
Somos meio ciganas, admito, e precisamos investir nessa questão do olhar, temos que valorizá-lo, é o nosso ganha-pão. Por isso nos espalhamos pela cidade em busca de clientes, vem cá, quero falar com você, vem cá, escute. Nosso trabalho é ler a mão do nosso tempo, dar ao mundo alguma notícia de seu destino. Ora, eu sei e todos sabem que isso, além de presunçoso, é uma impossibilidade, e não estou aqui para desmentir o mundo real. Mas, diante do impossível, há duas espécies de cronista: a que mente e a que imagina. Se eu disser que sou um dos que imaginam, posso estar mentindo, e mesmo assim gostaria de ser pago.
E será tudo em troca de grana? Não. Gostamos de dinheiro, mas se dinheiro não houver, dez minutos de sua atenção nos bastam. Porque também nos excitam os sulcos em sua mão aberta, esta palma suada exposta às violências de nossa época. E somos curiosos, exagerados sim, vemos beleza em qualquer linha da vida, mesmo nas mais apagadas, e toda essa beleza evanescente nos comove, nos dá prazer. Agora, se vocês nos esnobarem e sumirem na próxima esquina, se nós passarmos em branco e ninguém nos ler, malditos sejam os seus olhos, pois os nossos já o são, condenados à miragem disto a que se chama cotidiano. Tudo para nós é invulgar, que inocência, somos escritores de boa vontade, e se praguejamos assim, com tanta leveza, é porque sabemos que, no fundo, praga de cronista não pega, é brisa marinha nos cabelos.
Mas eu falava da gentileza de certos estranhos, e já estamos no campo das ameaças. Tudo é carência. Rubem Braga escreveu que o cronista é um desajustado emocional, um neurótico do desabafo. Não sei, mas precisamos mesmo que os leitores nos deem o braço, que sentem conosco nesta mesa, nos paguem uma bebida e dancem com a gente, aprovem nosso perfume e nos concedam alegria e assunto para o gasto. Vamos conversar, por favor, só eu e vocês, custa tão pouco, e minha vida, a felicidade de um dia, depende dessa nossa conversa à sombra das convenções, dessa delicadeza da parte de vocês, meus caros desconhecidos.
Perdão: se os chamo assim é porque a impressão de familiaridade que o cronista transmite aos seus leitores é falsa. E não por acidente. Nós queremos que seja desse modo, é um truque baixo, necessitamos de sua confiança, é ela que nos paga o cachê, a esmola amiga. Mas não é só dinheiro, repito. Também gostamos de elogios, que troço comovente, vocês vão pensar, e com razão. Mas lembrem de Blanche DuBois, pobre mulher, envelhecendo solitária entre os brutos. Ah, o medo que ela sentia de perder seus últimos encantos, desperdiçá-los num pântano qualquer. Era tão talentosa, tão bonita em sua penteadeira improvisada, produzindo-se, ou melhor, produzindo, mais para si que para os outros, uma ilusão de amor, beleza e eternidade. Apesar de tudo, sempre houve quem a comprasse, e aí eram dez, quinze minutos de mágica. Aliás, só há quem se venda porque há quem os compre, mas quem se vende, em geral, é que sai mal falado no acender das luzes.
Fato é que vivemos às suas custas. Somos maus administradores, gastamos tudo em miudezas, nos preocupamos com questões ancestrais e valores abstratos, não desenvolvemos a praticidade, nossa concentração é falha, vivemos muito tempo sob o jugo de nossos pais, são tantos, e sequer tivemos a competência de matá-los. Perdemos as propriedades da família, o direito à herança, a vergonha. Não nos adaptamos ao grande edifício literário, e nem teríamos como bancar o condomínio, nos custaria os olhos da cara, e vocês sabem, nos peçam tudo, menos os olhos.
Mas fiquem à vontade para nos solicitar uma história, qualquer uma, mesmo que pessoal e vexaminosa, tanto faz, nós a vendemos barato. Se preferirem, dançamos com vocês, e a vida toda, se necessário. Somos discretos, jamais perguntaremos os seus nomes, e faremos de tudo para cultivar esta intimidade misteriosa entre nós, esta ponte enevoada que nos serve de acesso uns aos outros. Ela é também um tipo de amor, e quem sabe não nos amemos concretamente, pelo menos até amanhã de manhã?
Uma crônica pode durar muito, sobreviver ao cronista, cruzar mares e selvas, subir sozinha as montanhas da lua, fazer uma carreira na literatura, essa coleção de espantos que se recusam a fenecer. Mas antes ela tem que viver entre os mortais, aspirar a poeira tóxica do presente e resistir. Tem que repercutir entre os vivos e deixar em cada contemporâneo a sua marca úmida, feito uma mancha de batom, um beijo estranhamente indelével, que exija de vocês uma reação de aceitação ou repulsa.
É por esse beijo que o cronista se apressa. Ele precisa ser ágil e sedutor, e sabe dos riscos que corre, conhece o ridículo a que se expõe. O cronista se entrega ao sereno e às paixões de ocasião, se deixa apedrejar, diminuir e maldizer. Pode quebrar a cara, mas precisa tentar. Sua missão é atrair os estranhos que, gentis ou não, vão passando entre as acácias. Um cronista é isso, uma máquina efêmera de produzir símbolos e memória. Ele tem muito a dizer e nada a ensinar, e dispõe de tão poucas linhas para tanto que, puxa, vem cá, me dê a mão, confie em mim, e depressa, os homens de branco já estão chegando, e já não estou me sentindo muito bem, socorro, me beije, obrigado.