Ilustração por Janio Santos

 

Dizem que os vaidosos costumam ter olhos apenas para o próprio umbigo. Contingência da razão? Para muitos deles as flunfas — fiapinhos que se formam dentro dessa cavidade abdominal — representam o único fato comunitário possível, criação pela qual o instinto de sobrevivência determina as práticas sociais. Tanto é que, para se desapegar de si, muitos lançam mão de filosofias inteiras, budismos, cinismos, estoicismos... Ou mesmo de um cotonete, vá lá.

 

Pois bem. De modo geral os escritores são umbigos ambulantes com o sujeito em forma de buraco enfiado numa de suas dobras ensimesmadas. O autor. Um conhecido me disse com acerto, certa vez:falte ao casamento de um amigo e dê uma desculpa qualquer, depois. Ele a aceitará sem dramas ou lamentações. Falte ao lançamento de seu livro. Ele nunca o perdoará... É o caso. Literaturas e flunfas.

 

Dito isso, posso me dobrar em mim mesmo com a desculpa esfarrapada, mas consciente, de que hoje sei como funciona o mercado literário, estabelecimento muito pouco afim com a literatura, mas de conhecimento recomendável para aqueles que se querem “artistas”. Arrisco-me?

 

Para o autor, talvez, o melhor fosse mesmo não sair da toca, como esses Salingers e Pynchons que abundam por aí, enfiados em seus furicos. Mesmo assim, entretanto, espíritos de porco alardeariam que tal misantropia é a confissão desaforada de que se bastam. O desaparecimento do artista seria uma forma subliminar de superexposição?

 

Mas voltemos a mim, se é que de mim saí. Em 2003 publiquei um livro de poemas, Peixe e míngua, pela Nankin Editorial. Fiquei dezoito anos a costurar e a remendar o danado. Publiquei-o imaginando bestamente que teria alguma repercussão, depois de tanto engenho. Caí da arte e do cavalo, despenquei-me do burro, pisoteado por mim mesmo. Duas ou três notas na imprensa. O resto foi silêncio. Eis a capa da obra. Uma foto que tirei de um velho portão de ferro carcomido pelo tempo:

 

Ah, dolorida lição de santa férula! Um artista incompreendido não pode desistir, sob pena de ter de enterrar na marra o próprio cordão umbilical na soleira da porta. Aí sim, lascou-se de vez. Seu livro jamais sairá de casa, como reza a simpatia.

 

Adiante. O fenômeno da falta de reconhecimento literário não poderia residir na biologia do escritor, está claro. No meu caso, por exemplo, tirante alguns achaques, funciono muito bem. Ademais, estudos biográficos comprovam que muitos autores capengas deram à luz obras de grande fôlego. Ora, ora, como apregoa a sabedoria popular, novamente, o cu nada tem que ver com as calças.

 

Após anos de severas leituras, descobri, enfim, que os livros têm vida. Não no sentido metafórico, o que há tempos se sabe. Eles vivem como seres habitantes deste mundo, mesmo. Respiram os nossos ares. Mesmo os natimortos, o que é circunstância curiosa, visto a taxa de óbitos se aproximar dos 100%. E o fato de se enfiarem na loca fria da obscuridade pouca relação tem com o trabalho do artista. É próprio de uma espécie nascida a fórcipe do umbigo dos homens. Literatura.

 

Uma infinidade de bifurcações históricas, no entanto, pode fazê-los ao menos tirar a página de rosto do buraco, se porventura não saírem correndo pelo mundo, o que poucos fazem, aliás, malgrado o desejo do criador, como se supõe. Em 2012 publiquei o romance As visitas que hoje estamos, pela Editora Iluminuras. Na página 389, há um fragmento que resume essa teoria. Coloquei nele outra foto da capa do livro anterior — uma que fora descartada, dentre as muitas que tirei —, legendando o que seria a possibilidade de renascimento de uma obra esquecida:

 

ninguém escreveu isso

 

continuo porque acredito nisso, não depende do indivíduo, nunca dependeu, um livro pode melhorar muito com o tempo, é assim, ó, é possível que um livro seja mais bem escrito mesmo depois de publicado, depende dos rumos do mundo, não, não é maluquice, acontece bastante, vai rindo, vai, pode dizer que é esperança dos desajustados, não é, não, entende?, não, você não entende, pelo menos agora

 

Bem, bem. Chega. Não quero me alongar. Hoje os bons conselhos têm o tamanho exato da incompletude, exigindo dos outros que terminem à sua maneira uma história que desconhecem... Um escritor não dita nem copia os rumos da história. Resta-lhe arrancar do umbigo aquelas flunfas, torcendo para que os fiapinhos encontrados, de algum modo, façam parte do mundo, tecido sempre esgarçado que cobre uns e desnuda outros. A vida.