Dentre os autoresditos “clássicos”, Geoffrey Chaucer (1343 – 1400) é muito provavelmente o menos conhecido do leitor comum. Os motivos são variados: suas obras, numerosas, desiguais e até certo ponto informes, seriam excessivamente datadas, tornando-se desse modo desinteressantes para o homem moderno. Para piorar, estariam escritas em middle english, um inglês arcaico e pouco compreensível pela maioria. Além disso, muitas delas restariam inconclusas.
É este o caso de sua obra-prima, Contos da Cantuária (The Canterbury Tales), cujo projeto só foi interrompido pela morte de seu autor. De 1386/1387 até 1400, Chaucer trabalhou arduamente no livro, cujo enredo consta de uma romaria composta por 29 peregrinos –30 se contarmos o próprio Chaucer – que se dirigem piedosamente ao túmulo de Santo Tomás Beckett. O dono da estalagem em que os peregrinos se reúnem lhes sugere então que, para se distraírem na viagem, cada qual narre duas histórias na ida e duas na volta. Como prêmio, o contador da melhor história seria agraciado com um jantar em seu estabelecimento.
Com esse projeto simples porém ambicioso, Chaucer conseguiu agregar a estrutura modular de duas das obras literárias mais ilustres e célebres de seu tempo: 1) a ideia da peregrinação, extraída da Commedia, de Dante; e 2) a contação de histórias, extraída, por suas vez, do Decameron, de Boccaccio. O ingrediente particular de Chaucer consistiria em reunir num único quadro personagens das mais variadas castas sociais, cada qual com seus valores, visões de mundo e linguagens particulares, coisa que nenhum outro autor o fez com tamanha precisão.
Em outras palavras, embora inconclusos - mas que por habilidade do autor não passa essa impressão, talvez porque, prevendo não ter o tempo necessário de conclui-los, tenha escrito um início, meio e fim muito bem delimitados -, Contos da Cantuária são uma das obras mais ricas de toda a literatura universal, e traduzi-la, tal como o fez o gaúcho José Francisco Botelho, não nos parece, de fato, outra coisa senão o que Ivan Junqueira, em carta particular ao tradutor, chamou de “milagre”.
Correto, Botelho não foi o primeiro a traduzir em língua portuguesa a íntegra de Contos da Cantuária. Tratando especificamente do Brasil, não poderíamos deixar de citar a tradução de Paulo Vizioli, levada a cabo nos finais dos anos 1980 e publicada pela T.A. Queiroz. Mas, por motivos no mínimo duvidosos, Vizioli, amplamente capaz de vertê-los em verso, preferiu fazê-lo em prosa, perdendo, com isso, todo o vigor poético de Chaucer. Botelho, por sua vez, seguiu o bom figurino tradutório, transladando verso onde há verso e prosa onde há prosa.
Mais do que isso, conseguiu manter o frescor métrico e rímico do original, graças a artimanhas típicas do bom tradutor. Citamos duas delas, apontadas pelo próprio Botelho em entrevista gentilmente a nós concedida: a “declinação” de versos e o uso certeiro da rima toante. Sobre a primeira, afirmou: “Queria produzir um texto de leitura extremamente fluente, que mesclasse o aspecto narrativo ao aspecto poético, de forma orgânica e indolor. Minha opção foi cometer um pecadilho: produzir uma tradução com mais versos que o original. Isso era possível em Chaucer sem grandes traumas, pois a maior parte da obra é em ‘riding rhyme’, ou seja, couplets, pares de versos que rimam entre si. Assim, muitas vezes ‘declinei’ um par de versos, transformando-o em quatro versos; sacrifiquei o tamanho do texto, mas mantive por meio desse sacrifício a métrica, o conteúdo e a fluência da leitura”.
Sobre a segunda, explicou: “Outra decisão importante foi incorporar à tradução o uso da rima toante, que é um tipo de rima muito musical, e não por acaso tão utilizada na música popular e na poesia oral. Além disso, é a rima dos trovadores ibéricos, também usada extensamente por Calderón de La Barca e outros do Século de Ouro. A rima toante, de certa forma, quebra a rigidez do verso, libera o potencial melódico da língua, despertando ressonâncias inesperadas em palavras que, num esquema mais sisudo, não rimariam; ela faz o idioma esvoaçar”.
Questionado, por fim, sobre o motivo por qual o leitor moderno deveria ler Chaucer e as mais de 600 páginas dos Contos da Cantuária, cravou: “Penso nesses textos como uma espécie de flecha que o passado disparou em nossa direção. Podemos ver de onde ela veio, pelo trajeto que ela percorre; mas ela já não faz parte do passado, está no tempo presente e, de certa forma, nos transpassa; mas também não se detém aqui, em nós, porque a mira estava voltada para o infinito”. E assim é, de fato.