1. Sonhei que Georges Perec tinha três anos e visitava minha casa. O abraçava, o beijava, lhe dizia que era um menino precioso.
9. Sonhei que Macedonio Fernández aparecia no céu de Nova York em forma de nuvem: uma nuvem sem nariz nem orelhas, mas com olhos e boca.
11. Sonhei que em um cemitério esquecido da África encontrava a tumba de um amigo cujo rosto já não podia recordar.
13. Sonhei que lia Stendhal na Estação Nuclear de Civitavecchia: uma sombra deslizava pela cerâmica dos reatores. É o fantasma de Stendhal, dizia um jovem com botas e nu da cintura pra cima. E você, quem é?, perguntei. Sou o yonqui da cerâmica, o húsar da cerâmica e da merda, disse.
14. Sonhei que estava sonhando, tínhamos perdido a revolução antes de fazê-la e decidia voltar para casa. Ao tentar me enfiar na cama encontrei De Quincey dormindo. Acorda, dom Tomás, lhe dizia, já vai amanhecer, você tem que ir. (Como se De Quincey fosse um vampiro.) Mas ninguém me escutava e eu voltava a sair para as ruas escuras da Cidade do México.
15. Sonhei que via nascer e morrer Aloysius Bertrand no mesmo dia, quase sem intervalo de tempo, com se os dois vivêssemos dentro de um calendário de pedra perdido no espaço.
17. Sonhei que era um detetive velho e enfermo e que buscava gente perdida havia muito tempo. Às vezes me olhava por acaso num espelho e reconhecia Roberto Bolaño.
20. Sonhei que o cadáver voltava à Terra Prometida montado em uma Legião de Touros Mecânicos.
23. Sonhei que voltava da África em um ônibus cheio de animais mortos. Numa fronteira qualquer aparecia um veterinário sem rosto. Sua cara era como um gás, mas eu sabia quem era.
24. Sonhei que Philip K. Dick passeava pela Estação Nuclear de Civitavecchia.
29. Sonhei que traduzia Virgilio com uma pedra. Estava nu sobre uma grande pedra de basalto e o sol, como diziam os pilotos de caça, flutuava perigosamente às 5.
31. Sonhei que a Terra acabava. E que o único ser humano que contemplava o fim era Franz Kafka. No céu, os Titãs lutavam até a morte. De um banco de ferro forjado de um parque em Nova York, Kafka via arder o mundo.
32. Sonhei que estava sonhando e que voltava para casa muito tarde. Na minha cama encontrava Mario de Sá-Carneiro dormindo com meu primeiro amor. Ao descobri-los, percebia que estavam mortos e mordendo-me os lábios até sangrar eu voltava aos caminhos vicinais.
34. Sonhei que era um detetive latino-americano muito velho. Vivia em Nova York e Mark Twain me contratava para salvar a vida de alguém que não tinha rosto. Vai ser um caso condenadamente difícil, senhor Twain, dizia a ele.
36. Sonhei que fazia um 69 com Anaïs Nin em cima de uma enorme rocha de basalto.
37. Sonhei que fodia com Carson McCullers numa casa em penumbras na primavera de 1981. E nós dois nos sentíamos irracionalmente felizes.
40. Sonhei que uma tempestade de números fantasmais era a única coisa que restava dos seres humanos três bilhões de anos depois que a Terra havia deixado de existir.
42. Sonhei que tinha 18 anos e via meu melhor amigo de então, que também tinha 18 anos, fazendo amor com Walt Whitman. Faziam numa poltrona, contemplando o entardecer borrascoso de Civitavecchia.
45. Sonhei que Pascal falava do medo com palavras cristalinas em uma taberna de Civitavecchia: “Os milagres não servem para converter, senão para condenar”, dizia.
47. Sonhei que Baudelaire fazia amor com uma sombra numa casa onde haviam cometido um crime. Mas Baudelaire não estava nem aí. “É sempre a mesma coisa”, dizia.
50. Sonhei que depois da chuva um escritor russo e também seus amigos franceses optavam pela felicidade. Sem perguntar nem pedir nada. Como quem se derruba sem sentido sobre seu tapete favorito.
53. Sonhei que voltava às estradas, mas desta vez não tinha 15 anos e sim mais de 40. Só tinha um livro, que levava em minha pequena mochila. De repente, enquanto ia caminhando, o livro começa a arder. Amanhecia e quase não passavam carros. Enquanto jogava a mochila chamuscada em um canal, senti que minhas costas coçavam como se tivesse asas.
55. Sonhei que ninguém morre na véspera.
56. Sonhei que um homem voltava sua vista atrás, sobre a paisagem anamórfica dos sonhos, e que sua mirada era dura como aço mas também se fragmentava em múltiplas miradas cada vez mais inocentes, cada vez mais deslavidas.
57. Sonhei que Georges Perec tinha três anos e chorava desconsoladamente. Eu tentava acalmá-lo. O pegava os braços, lhe comprava guloseimas, livros para pintar. Logo íamos para o Passeio Marítimo de Nova York e enquanto ele descia pelo escorregador eu me dizia a mim mesmo: não sirvo para nada, mas servirei para cuidar de você, ninguém te fará mal, ninguém tentará te matar. Depois começava a chover e voltávamos tranquilamente para casa. Mas onde estava nossa casa?
Tradução: Ronaldo Bressane é jornalista e escritor e assina o blog Impostor (http://impostor.wordpress.com/)
Brasil não conhece poesia de Bolaño
Schneider Carperggiani
A Companhia das Letras está realizando um ótimo trabalho em editar a obra do escritor chileno Roberto Bolaño (1950-2003), ainda que cometa alguns pecados na escolha de certos títulos. Por que deixar de lado a enciclopédia farsesca de monstros que é La literatura nazi en América e preferir o confuso Monsieur Pain? O mais recente a sair no Brasil é a coletânea de contos Chamadas telefônicas, que destaca o talento de Bolaño com narrativas breves, sobretudo para o leitor que teve contato com o seu legado a partir de “gigantes” como Detetives selvagens e 2666. No entanto, sua poesia permanece inédita no Brasil.
Até meados dos anos 1990, Bolaño havia dedicado a maior parte dos seus escritos à poesia, ainda que fosse um poeta irregular. Mas aí está o detalhe sui generis do seu universo: trata-se de um autor exemplar em escrever sobre poetas de obra incompleta, ou mesmo inexistente (gente que acreditava que a vida é um modo de fazer literatura); e não um grande poeta de fato. É sobre isso que trata algumas das suas obras seminais como Detetives selvagens e Estrela distante, narrativas sob o signo do horror político vivido pela América Latina na segunda metade do século passado.
O começo da sua produção poética data de meados dos anos 1970 e foi marcada pelo juvenil Manifesto Infrarrealista, que propunha uma nova poética para um continente enclausurado por ditaduras, onde os grandes ídolos da literatura já não pareciam mais fazer qualquer sentido. O Manifesto Infrarrealista se orgulhava de que seus “parentes” mais próximos eram os “francoatiradores, os planeiros solitários que assolam os cafés dos mestiços da latino-américa, os massacrados em supermercados, em suas tremendas desjuntivas indivíduo-coletividade; a impotência da ação e da busca (a níveis individuais ou bem enlameados em contradições estéticas) da ação poética”.
O Manifesto Infrarrealista tornou-se famoso justamente por ter sido ficcionalizado em Detetives selvagens, que descreve as angústias de um grupo de jovens escritores à solta na turbulenta capital mexicana dos anos 1970. Nessa época, refugiado do Chile de Pinochet, Bolaño e seus companheiros infrarrealistas eram inspirados sobretudo pela literatura beatnik norte-americana. Essa sua produção inicial foi reunida em publicações de vida efêmera, atualmente relíquia para colecionadores.
Na sua poesia é possível encontrarmos a gênese de uma das temáticas favoritas da sua literatura: o fascínio pelo clima noir de livros policiais, numa série de poemas sobre detetives (é famosa a declaração de Bolaño de que seu sonho era ser detetive criminal). Essa série, e boa parte da sua poesia, está reunida na antologia póstuma La universidad desconocida.
O escritor Ronaldo Bressane traduziu alguns poemas do livro póstumo Tres, em que o escritor lista uma série de sonhos e pesadelos (na verdade, o imaginário do escritor é sempre atravessado por um certo tom onírico e surrealista), que acaba deixando transparecer algumas das suas maiores influências literárias. É o caso de Georges Perec. Então, para os leitores do Pernambuco deste mês, um Bolaño inusitado.