Cartas de Rosa ao seu tradutor revelam sua visão particular do que é literatura


Guimarães Rosa-Edoardo Bizzarri, parceria essencial para uma ampliação de sensibilidades. Rosa, contribuindo com uma interpretação de um universo absolutamente singular – o de um guimarãesroseado sertão – destinando-a às comunidades de língua portuguesa. Bizzarri secundando-o para disseminá-la junto ao público italiano, com atenta e meticulosa tradução. O trabalho foi elaborado a quatro mãos, com o escrúpulo e o rigor necessários a qualquer fatura que se queira permanente e fecunda. A obra traduzida foi Corpo de baile (Corpo di ballo), de 1956, e o labor de Bizzarri teve início em 1963. A leitura das correspondências entre esses escritores está  registrada em João Guimarães Rosa: Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri.
Ali, as concepções de leitura e literatura do maior autor brasileiro do século 20 vêm à tona e o entendimento de sua obra como artefato linguístico, literário, mitológico e metafísico, já evidente, ganha clareza por dentro: corpo ao microscópio. O que deveria ser vedado ao crítico literário, é tranquilamente exposto, por Guimarães Rosa, ao tradutor, a fim de que este possa transpor para sua língua os significados que guarda o original. Acompanhando as missivas, percebemos, dentre tantas coisas, o quanto o espaço literário, construído sempre de modo motivado, é para Rosa estrutura semântica, jamais pano de fundo. Diz o escritor mineiro que, em Recado do morro, por exemplo, o nome das fazendas (Jove, Dona Vininha, Nhô Hermes, Nhá Selena, Marciano, Apolinário) e o dos companheiros de Pedro Orósio (Jovelino, Veneriano, Zé Azougue, João Lualino, Martinho, Hélio Dias) formam uma exata homologia, tendo por fio agregador a mitologia romana e suas respectivas divindades. O ambiente traz, cifrada, uma cosmogonia, num intertexto orgânico, que põe Corpo de baile na rede seleta da alta literatura universal.
As cartas deixam à mostra pedras indicando o caminho, as evocações de Dante, das mitologias bantu, das crenças populares, dos textos sagrados (Bíblia, Vedas, Upanixades), da filosofia de Platão, Plotino, Bergson. Este circuito projeta a literatura de Guimarães Rosa numa conversa central, fundamental, e não apenas de esquina, em que o regionalismo a quis sedimentar.
Ora, o autor não diz outra coisa quando atribui – ao modo escolar – uma pontuação aos elementos estruturais de seus livros: “Por isto mesmo, como apreço de essência e acentuação, assim gostaria de considerá-los: a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos; d) valor metafísico-religioso: 4 pontos” (pp. 90-1). Importantíssima tal valoração de Rosa, pois dá ao que o encarcera no localismo (realidade sertaneja) o mínimo de relevância, em favor do que o transcende e universaliza (poesia e metafísica). É o artesanato com a palavra – trabalho raro, sempre fora de moda – que entrega ao autor um passaporte forte o suficiente para suplantar os limites geográficos do regionalismo da década de 30. Aliás, o acuro verbal que o distingue é assim descrito pelo próprio escritor: “Você sabe, eu não improviso coisas escritas, sou lento, atormentado, sou o antijornalista”.

CAIXA DE BRINQUEDOS   
Jorge Luis Borges escreveu que o papel do poeta é devolver a linguagem às suas fontes. Os processos de metaplasmo na língua fazem distante o que, retirado o pó do tempo, volta a lustrar, em evidência. Guimarães Rosa promove, em sua escritura, uma recuperação linguística, desmascarando os encantos de Proteu. Na sua Correspondência, esclarece as dúvidas do tradutor, que o indaga a respeito da expressão corujo vismáu: “Existe bisnáu ou pássaro bisnáu, significando ‘velhaco’, homem finório e astucioso. Mas a expressão, o termo, veio do Latim: bis malus. Daí o meu vismau – como ‘restituição etimológica’ ”. Qual Ungaretti a Croce, Rosa responde a muita poesia “fôrmalizante” do seu tempo recusando-se a excluir a memória como argamassa de qualquer projeto (pro-jectum = lançar à frente, ao futuro).  Afinal, a seta só vai além porque é, em algum momento, tensionada para trás.
Percebemos, lendo as interlocuções com Bizzarri, que Guimarães, ao criar seus malabarismos linguísticos, não faz uma cerebralizante meditação filológica. Antes, põe a língua em caixa de brinquedos. Ele que, como Riobaldo, era puro entusiasmo, radicalmente falando:  queria guardar todos os deuses em si. O “Aí, Zé, opa”, revelado ao amigo italiano como um matreiro palíndromo – A poesia – é disso irrefutável prova. Alguns poderiam, querendo “profundidade”, dizer: - e daí? Ao que Rosa alertaria: não seja tão escravo do intelecto. A poesia traz em si a possibilidade de ser apenas (apenas?) jogo. E lembra Huizinga: também somos homo ludens.
A “paciência bíblica” de Guimarães Rosa, expressão do próprio tradutor, é a compreensão que o escritor tem de sua função como demiurgo. Sua compreensão do que venha a ser como literato é muito próxima de uma concepção platônica do real. Ele aí está apenas para tentar trazer a reminiscência de algo que existe em perfeição. E Edoardo Bizzarri, por sua vez, terá a função de desenvolver os relembramentos realizados pelo autor. Com a diferença que o poeta de Corpo de baile não pensa, como provavelmente o faria Platão, que o transpositor, nesse caso, está três graus afastado da Verdade. Para ele, Guimarães Rosa, o tradutor pode mesmo reorganizar, consertar o imitador primário e chegar ao mundo ideal antes do mediador. Assim o afirma, textualmente:
“Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se o estivesse ‘traduzindo’, de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no ‘plano das ideias’, dos arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando, nessa ‘tradução’. Assim, quando me ‘re’- traduzem para outro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o Tradutor quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do ‘original ideal’, que eu desvirtuara...”
A liberdade que Rosa outorga a Bizzarri é filiada ao modo make it new de traduzir. De fato, pede ao italiano para não se prender estreitamente ao texto, mas que, antes, “voe por cima”. Ou seja, o provérbio tradutore/traditore não poderia cair num contexto mais apropriado e produtivo: pela nacionalidade daquele que irá verter linguagens, assim como pela ideologia literária do autor de Cordisburgo, o qual entende que é exatamente pela traição que o tradutor se fará, a ele, fidelíssimo.  No Grande Sertão: Veredas, Riobaldo diz que o melhor de tudo no mundo é que as pessoas ainda não estão terminadas. A possibilidade que Guimarães oferece a Edoardo Bizzarri de alterar o Corpo de baile quando necessário revela que não apenas as pessoas estão indefinidas. Também assim as suas obras.