Toda palavra, para além de levar consigo uma ideia, um significado, é uma célula simultaneamente sonora e, note-se bem, coreográfica: assim como as sílabas “ma”, “cor”, “sol” ou “ti” não são apenas sons, mas a combinação de movimentos corporais precisos, que envolvem pulmões, cordas vocais, língua, dentes e lábios, um verso transcende a música para se harmonizar, sim, como dança, ainda que discreta. Embora aos que queiram emagrecer haja receituários melhores, a leitura em voz alta de uma descrição, por Mário Faustino, de um amor que transpõe as mais extenuantes dificuldades talvez deixe claro em que medida um simples verso convoca os músculos: “Amor que força as portas dos infernos”.

As possibilidades de variação de um verso quanto a andamento, ritmo acentual, melodia vocálica, “timbragem” consonantal etc., são dificilmente catalogáveis, assim como o são as impressões que, como acima, podem nos suscitar, se alguém harmoniza com mestria esses elementos. Pode-se ir da intrepidez marcial e retumbante do épico até o quase silêncio de Emily Dickinson. Muitas vezes, mesmo que não entendamos perfeitamente o que diz um verso, nos sentimos fortemente impressionados por seu movimento rítmico, o que nos lembra: antes mesmo de aprendermos a articular pensamentos, nós já articulávamos sons, e já no útero, diz-se, aprendemos a reconhecer os sons do idioma. Yeats, por isso, quando escrevia e parecia falar sozinho à mesa, não estava maluco: apenas testava versos em suas próprias vísceras, até que nos saísse com um In dancing silver--sandalled on the sea.

Patinação, métrica e Comédia
Com a prática, o leitor de poesia começa a compreender: as palavras, quando em sequência, transmitem umas às outras, sucessivamente, o impulso que sobra de sua própria articulação, impulso que a próxima palavra retrabalha num novo ápice acentual, ou resolve de algum modo harmônico, dando fim ao verso. É como na patinação no gelo: se o impulso do movimento anterior for maior do que o movimento subsequente pode absorver, o verso cai; se for menor do que ele precisa para ser executado, ele perde em decisão e fluidez, torna-se hesitante e forçado, e os jurados reclamam. Quando a economia é perfeita, administrando-se a energia do início ao fim sem dissipações, alcança-se o sempre buscado equilíbrio acentual. Essa mesma dinâmica de impulsos, que em versos de igual número de sílabas pode se dar de formas bem diferentes, é também o que empresta a cada verso uma pulsação, um padrão de batidas, no mais das vezes já previsto por um dado costume vigente. Eis, exatamente, o que chamamos a métrica de um verso: a sua medida em número de sílabas e quais delas são as mais fortemente acentuadas, caracterizando o seu pulso.

Dos aproximadamente 15 mil versos da Divina comédia, de Dante, muito poucos não serviriam como bom exemplo do mais pleno equilíbrio acentual. Mas mais interessante é a quantidade de modos diferentes pelos quais o alcançam, dando-nos uma excelente amostra de como a disposição dos acentos num decassílabo pode variar, ou do quão pode variar sua métrica – mais do que poderiam esperar ou perceber os nossos ouvidos contemporâneos, mesmo de nossos tradutores mais experientes.

Em sua maioria, os decassílabos da Divina comédia não causam qualquer sobressalto ao leitor de hoje: sua acentuação, recaindo predominantemente sobre as sílabas pares, por vezes incluindo a terceira, gera ritmos bem conhecidos do leitor de Camões, e da imensa maioria do que o sucede, desde Gregório, as Cartas chilenas, O Uraguai, Gonçalves Dias e Cruz e Souza até Carlos Pena Filho, Augusto dos Anjos, Jorge de Lima, Vinícius e Drummond. Isso para citar apenas alguns poucos: é uma verdadeira multidão a dos responsáveis, ao longo do tempo, por moldar nossas expectativas auditivas e coreográficas diante de um decassílabo. Mas há também em Dante, por exemplo, entremeados a esses, versos que, simplesmente, sem abrir mão de seu equilíbrio, deslocam uma de suas pisadas, como um baterista que resolve, sem aviso, acentuar o tempo fraco do compasso uma única vez, desequilibrando alguém na pista de dança. É o que acontece, por exemplo,quando a sétima sílaba se acentua em lugar da sexta ou da oitava, como logo ao início da Comédia, no verso 22. E a motivação parece ser das mais interessantes.

Depois de descrever a famosa “selva escura”, recém-deixada para trás, Dante a compara ao mar revolto que um náufrago, sem fôlego, chegando finalmente à praia, olha de novo atrás de si, agora aliviado. É na referência à falta de fôlego que o acento deslocado inscreve seu tropeço: E come quei che con lena affannata... (ou: “e como alguém cujo fôlego falta...”). O verso ele mesmo, aqui, dramatiza o vacilar do fôlego. Esse mesmo procedimento, com o mesmo metro, é utilizado por Dante várias vezes, como ao descrever um centauro que repentinamente estaca o passo, ou o momento exato em que o seu próprio peso de homem vivo – diferente das almas do Inferno – faz mover sob os seus pés uma pedra em falso.

Igualmente interessante é o metro que nos soa como uma valsa: UM-dois-três, UM-dois-três... Sua primeira ocorrência é bem cedo na Comédia, no verso 7: Tant’ è amara che poco è più morte (ou: “Tanto ela amarga que é mais do que a morte”). Nesse caso, a lentidão e a acentuação monotonamente cíclica emprestam à descrição do “amargor” um ritmo que se arrasta, característica essa também explorada por Drummond, no uso que faz do mesmo metro em sua Oficina irritada: “Esse meu verbo antipático e impuro”, “Seco, abafado, difícil de ler”.  Essa exata coreografia conhece em Dante ainda outros usos. Entre as passagens mais plásticas estão aquelas em que ele a faz de mímica para as mais variadas espécies de movimento circular, das sombras que se reúnem em círculo à sua volta no Canto XVI do Inferno até as voltas que ele mesmo dá numa corda até desamarrá-la de sua cintura, e, novamente, até enrolá-la em si mesma como novelo, com o fim de atirá-la no poço central do inferno e dali fazer surgir a impressionante figura de Gerião. Nessa descrição, que ocupa apenas seis versos do Canto IX, três deles trazem a acentuação cíclica. Já no início do Canto V, a motivação é outra: Minós, posto como juiz à entrada do primeiro círculo infernal, ao decidir que pena caberá à alma recém-chegada, envolve-a com sua cauda tantas vezes quantos serão os círculos que ela irá descer, e então a arremessa. Apenas nessa descrição, por si só engenhosa, contida nos 15 primeiros versos do Canto V, o metro-valsa ocorre quatro vezes (mesmo número de vezes em que ocorre em todo o Canto I).

As traduções

Ao se analisar quatro das traduções da Comédia para o português, os resultados são algo intrigantes. Uma rápida olhada em nosso placar, que contabiliza o número de versos em metro-valsa no original e nas traduções,nos dá uma ideia. Embora sob outros aspectos algumas dessas traduções possam ser consideradas excelentes, inclusive do ponto de vista da beleza coreográfica – mesmo que tendente à maior regularidade métrica –, a riqueza mímica do verso de Dante, com suas sutilezas e ironias rítmicas, é algo que perdemos. Na lírica, em que isso também acontece, a perda talvez seja ainda maior, mas é assunto para outro texto.

Alguns detalhes importantes: no caso do Canto I de Augusto de Campos, seu placar máximo só poderia ter sido 2, porque traduziu apenas um trecho inicial; quanto a Jorge Wanderley, embora seu placar seja o melhor, apenas numa única ocorrência um verso seu corresponde, de fato, a um verso também no original em valsa (no mínimo curioso). Em três traduções alemãs e em três inglesas que também consultamos ao acaso, todas dos séculos 18 e 19 (com a exceção de uma das inglesas, que é de 1980), ficamos no 0 a 0.

Mas enfim: embora raras após o Renascimento, as cadências que descrevemos mais acima, note-se, não inexistem em nossa tradição poética; é possível encontrá-las, por exemplo, em trovadores como Garcia de Guilhade ou mesmo em Drummond. Mesmo com tais exemplos também à disposição, os costumes métricos hoje vigentes, ao que parece, não permitiram aos nossos tradutores ouvir de modo nítido a pluralidade do decassílabo medieval. É como não enxergar uma cor num quadro por força de um hábito cultural, o que só nos lembra o quanto a percepção não é um ato puro, e talvez ainda menos em arte.

Quanto a Dante, a coreografia precisa que ensaiamos ao ler determinados versos seus ainda conserva, para nossa surpresa, o frescor presencial dos gestos que esboçou na mente por volta de 1300. A poesia escrita, por isso, é tão performática quanto qualquer outra, mas o corpo do performer, caro leitor, é o seu. Ler poesia, assim, é a melhor maneira de lembrar que ela não é, nem nunca foi, abstrata.


Artur A. de Ataíde é doutorando em teoria literária pela UFPE e esse texto faz parte da sua pesquisa.