Tradução metade da vida final saturada compressed

Um dos trabalhos intelectuais mais difíceis é a tradução de poesia. Alguns opinam de ser impossível até. Outros optam por expressões como “transcriação”, algo aquém-além de traduzir. Se cada língua pode ser considerada um mundo por si só, não menos verdade será isto aplicado às palavras, e a algumas em especial. O que significam? O que querem dizer? Quais os seus sentidos?

Do divórcio com a música a poesia moderna manteve entre os seus “bens” a autonomia de não precisar de ser melodiosa para alcançar o máximo vigor sonoro. Mas compartilha com a música instrumental uma prerrogativa: pode emocionar sem a ‘muleta’ ou o ‘andaime’ do significado. Daí a resposta de Rimbaud sobre sua Saison: “quer dizer o que está escrito, literalmente, e em todos os sentidos”.

No entanto, a despeito de, os tradutores, e ainda mais, os tradutores poetas continuam no seu trabalho menos de Hércules e Sísifo e mais de Hefesto e Prometeu. Tentando forjar a vibração e a energia do original em outra língua. Alguns até em mais de uma. É o caso do poeta brasileiro Alípio Carvalho Neto, que ousa colocar em português versos de autores gregos, italianos, alemães e algum etc. A convite do Pernambuco ele aceitou o desafio de elaborar uma nova versão do poema Metade da Vida, de Johann Christian Friederich Hölderlin (1770-1843). O resultado está nestas páginas e pode ser cotejado com o original.

São apenas catorze versos. Nada fáceis. O fecho tem alimentado o debate entre os eruditos por mais de um século. No Brasil, a tradução mais conhecida é a de Manuel Bandeira, mas há diversas outras. O ponto controverso gira em torno de um substantivo e de um verbo. “Klirren die Fahnen”. Alguns traduzem ‘Fahnen’ pela designação comum de ‘bandeiras’; outros, de cataventos. No caso das primeiras, surge a pergunta: Tilintar? Tinir? Bater? As bandeiras não tilintam ou não tinem, exceto se se pensa em algo metálico, e elas não costumam ser de metal, e sim seus mastros, por vezes. Esta pode ser a parte mais singela de um problema a respeito do qual os especialistas não se puseram nunca de acordo.

Começando pela tradução mais famosa no Brasil, a de Bandeira. É o poeta quem conta em Itinerário de Pasárgada, que a tradução de ‘Metade da vida’ foi “uma das maiores batalhas que já pelejei na minha vida de poeta…” Piorando as coisas, na primeira – e pior impressão – o linotipista trocou a palavra inicial ‘peras’ por ‘heras’.

Augusto Meyer enfatizou, mais de uma vez, que não há bandeiras ou bandeirolas no poema, mas, sim, cataventos. É provável que sua argumentação divulgada nos jornais do Rio de Janeiro tenha influenciado Manuel Bandeira a alterar a citada tradução, pois, na primeira versão está ‘bandeiras’, e, na segunda, a que a maioria conhece, ‘cataventos’. Paulo Quintela, que, na tradução de 1945, optara por ‘bandeiras’, trocou-as por ‘cataventos’, na de 1959. Neste caso, provavelmente, influenciado pelas interpretações de Lachmann e Bertaux.

Otto Maria Carpeaux, o ensaísta austríaco que encomendou a tradução do pernambucano, opinou a favor de bandeiras. No artigo “Metade da vida”, publicado no Diário Carioca, em 12 de setembro de 1954, diz:

Fiquei sabendo que nosso eminente amigo Augusto Meyer acaba de levantar uma dúvida quanto às últimas linhas da tradução do poema ‘Metade da vida’, de Hoelderlin, feita por mestre Manuel Bandeira:

... Os muros avultam

Mudos e frios; ao vento

Tatalam bandeiras’.

Podem bandeiras tatalar no vento? Decerto, quando são de ferro. Ora, em língua alemã existe uma palavra ‘Windfahne’, o que significa, literalmente, ‘vento-bandeiro’; o sentido é ‘biruta’. E assim deveria ter traduzido o nosso poeta...

Acontece, porém, que Hoelderlin não escreveu ‘Windfahne’ (birutas) e sim ‘im Winde die Fahnen’ (no vento as bandeiras). Não pretendo alegar o argumento baseado apenas em meu senso instintivo da língua, de que, ao ler o poema, nunca me ocorreram birutas, mas, sim, sempre, bandeiras no vento. Tampouco é decisivo o fato de que dois bons tradutores ingleses entenderam da mesma maneira o texto: Stephen Spender (‘in the wind – Clatter the flags’) e Cressida Bonham Carter (‘in the wind – the clash of the banners’). Prefiro admitir que a expressão ‘tatalam bandeiras’ é ilógica, propondo um fato impossível; e citar Goethe: ‘A poesia lírica sempre é razoável no conjunto e um pouco irrazoável nos pormenores’. Ou então, para dizê-lo em termos da crítica moderna: a expressão pode ser ilógica como contextura, mas ter sentido como parte da estrutura do poema’.”

No artigo sob a forma de carta aberta, “Bilhete dos cataventos”, publicado no Correio da Manhã, em 18 de setembro de 1954, Meyer se dirige a Carpeaux admitindo que, no seu próprio ‘tempo da poesia’, também escorregou no mesmo erro, ao traduzir ‘Klirren die Fahnen’ como ‘tatalam as bandeiras’, e que nisto estaria na boa companhia de Bandeira e Stephen Spender. Mas se redimira.

Defende ele que a ‘familia onomatopédica’ do verbo Klirren são ‘os ruídos metálicos ou cristalinos’. E cita mais de um dicionário para provar seu argumento, inclusive um etimológico. Como pá-de-cal do, lembra que, em português, “bandeira’ pode ser também ‘catavento de metal no alto das torres”. Quanto a ser a palavra usada pelo poeta, Fahnen e não Windfahne, simplifica, pois, na sua visão, Hölderlin obedeceu a ‘necessidades métricas e rítmicas’.

Triste realidade, dura desilusão para quem levou metade da vida a ver bandeiras atormentadas no fim do maravilhoso poema de Hoelderlin’. Ele, Meyer, remete a um outro artigo seu, no Diário Carioca, de 29 de novembro de 1953 em que rebate outra tradução que no lugar de cataventos pusera bandeiras. Termina seu artigo levantando outros argumentos a favor de cataventos, sobretudo dos germanistas.

Como o assunto trafegou em outras línguas e culturas? São muitos os exemplos. Aqui apenas uma seleção mínima deles. Num ensaio sobre o compositor de lieder Wilhelm Müller, a pesquisadora Susanne Stöckle (capítulo quatro do livro Mare, fiume, ruscello: acqua e musica nella cultura romantica), ao comentar uns versos, aponta:

Estas linhas trazem naturalmente à mente outro Winter-gedicht, Hälfte des Lebens (1804) de Hölderlin, que termina com um som muito semelhante ao Wetterfahne de Müller: As paredes permanecem / silenciosas e frias, ao vento / as bandeiras rangem.”

Erwin Theodore, no artigo “Plurilinguismo: a tradução e os ‘falsos amigos’”, publicado na Revista Brasileira, da ABL (abril-maio-junho, 2004), repassa e analisa diversas traduções desse poema. Na sua própria versão, “no vento/ rangem as veletas.” Na de José Paulo Paes, “tatalam/ as bandeiras ao vento”; na de Roswitha Kempf, “no vento/ tilintam os lábaros”. Em outro artigo, sob o título de “A tradução de obras literárias alemãs no Brasil”, ele apresenta mais de uma versão de “Metade da vida”. Na de Paulo Quintela, “ao vento estralejam as bandeiras”, e opta, ele próprio, pela seguinte solução: “no vento rangem as bandeiras”.

Um excelente trabalho é o de Marcelo Rondinelli. Sob o título de Hipérion, Hiperíon, Hiperion, Hiperião: destinos e constelações de um Hölderlin (re)traduzido no Brasil. Sua tese de doutor em estudos da tradução. Nela apesenta a tradução de “Metade da vida”, de Marco Lucchesi, de 1992:

Peras amarelas

e rosas silvestres

à beira do lago.

Cisnes graciosos,

bêbados de beijos,

dobram a cabeça

nas águas sacras e sóbrias.

 

Ai de mim! Aonde irei colher, se

for inverno, as flores, e aonde

os raios de Sol

e as sombras da Terra?

Os muros quedam-se

frios e mudos; ao vento

tatalam as bandeiras.

 

Michael Hamburger optou por “Weathercocks clatter”, e afirma que sua interpretação do último verso permaneceu inalterada a cada versão. Mesmo ninguém podendo afirmar com certeza, reconhece ele, que as ‘Fahnen’ não sejam bandeiras tremulando ao vento “com um som tão sinistro que Hölderlin o interpretou como um som metálico ou vítreo ou congelado”. (ver o seu artigo no livro Translating Poetry – the double labyrinth, editado por Daniel Weissbort, em 1989. (Macmillan Press).

Luis Cernuda traduziu “restallan las banderas” no lugar “rechinan las veletas”. Mas os seus comentadores dizem que houve uma má interpretação do verbo ‘onomatopeico’ klirren.

Emilio Maciel traz “rangem as bandeiras”. Num longo e erudito ensaio sobre Hölderlin, Antonio Cicero apresenta uma versão literal: “ao vento batem as bandeirolas”. Em outro texto, Rosaura Eichenberg traz “ao vento rangem as ventoinhas”. Danilo Serpa apresenta uma análise do poema de Hölderlin e traduções brasileiras no artigo “Hölderlin e a questão da escrita em formas antigas: aspectos de sua tradução no Brasil”.

Quem talvez melhor situou o poema de Hölderlin e os problemas por ele suscitados foi Arturo Parada Diéguez, num longo artigo publicado na revista Entreculturas [12 (2022), pp. 19-29]. Defende ele o uso de “bandeiras” na tradução do poema de Hölderlin:

Não resultaria excessivamente difícil justificar também esta proposta de tradução: melancolia pelo que se foi, fugacidade, esse ‘cair repetido’, fatalidade e sino, o repicar das bandeiras, que evoca o tinir de sinos, a disposição estrófica dinâmica, etc. É que sempre e quando as opções de tradução não nasçam da indiferença e/ou arbitrariedade, uma tradução, digamos, livre, pode chegar a estar más próxima do poema original que uma muito mais apegada ao texto. Paradoxal? Em absoluto: a versão de Francis Bacon do retrato de Velázquez do papa Inocêncio X dá, sem dúvida, muito mais conta do original do que aquelas que cuidam de copiar fielmente o quadro, com a particularidade de que no retrato de Bacon nem sequer se reconhece o personagem. Singelamente, Bacon captou o fundamental do retrato na medida que soube prescindir do acessório”.

Hälfte des Lebens

Hölderlin

 

Mit gelben Birnen hänget

Und voll mit wilden Rosen

Das Land in den See,

Ihr holden Schwäne,

Und trunken von Küssen

Tunkt ihr das Haupt

Ins heilignüchterne Wasser.

Weh mir, wo nehm‘ ich, wenn

Es Winter ist, die Blumen, und wo

Den Sonnenschein

Und Schatten der Erde?

Die Mauern stehn

Sprachlos und kalt, im Winde

Klirren die Fahnen.

 

 

 

Metade da vida

 

Alipio Carvalho Neto

 

 

Com amarelas peras pende

Plena de rosas selvagens

A terra no lago,

Vós adoráveis cisnes,

Bêbados de beijos

Mergulhai a cabeça

Na sóbria e sagrada água.

 

Ai de mim, onde encontrar, quando

É inverno, as flores e onde

O raio de sol,

E a sombra da terra?

Os muros erguem-se

Taciturnos e frios, ao vento

Tiritam as bandeiras.