Hallina Beltrão sobre foto de divulgação


Nada mais distante da imagem de Wallace Stevens (1879- 1955), escritor e executivo de uma grande companhia de seguros, da qual chegou a ser vice-presidente, que a de poeta maldito. Mesmo assim é possível localizá-lo na linhagem do assim chamado transcendentalismo vazio, que pode ser rastreada até Rimbaud e Edgar Allan Poe, seguidos de Baudelaire e Mallarmé, Stephan George e Rilke, Paul Valéry e tantos outros. Stevens empreendeu sua cruzada poética na calma e obscura Hartford, em Connecticut, espécie de refúgio contra a agitação nova-iorquina. Ali, sem que sequer fosse conhecido dos seus concidadãos, viria a se tornar figura exponencial entre os modernos, cotado por Harold Bloom entre os cinco melhores: Yeats, Pound, Eliot e Auden.

Wallace Stevens esteve sempre preocupado com o papel formativo do poeta sobre a realidade, ou seja, a poiésis, a partir da imaginação. Abandonada a ideia de Deus, que não hesitara em considerar a principal ideia poética do mundo, a poesia é a essência que lhe toma o lugar, como redenção da vida. A imaginação substitui a ordem transcendente em que insistem as religiões. Stevens era também estilista ímpar e um hábil filósofo, que explorava com vigor a ideia da poesia como a fusão suprema da imaginação criativa e das coisas que povoam o mundo, numa palavra, a realidade.

Dois dos poemas aqui traduzidos, Treze maneiras de olhar-se para um melro e Quarto cinza, fazem parte da primeira poesia de Stevens, publicados antes de 1917, e integra os Collected poems de Wallace Stevens, com os quais conquistaria o Pulitzer Prize em 1955, contribuindo desde cedo, portanto, para a formação do cânone do autor e da própria poesia americana moderna. O terceiro poema, Solilóquio final do amante interior, foi composto nos derradeiros anos, revelando toda a instigante complexidade em que viria a desaguar a poética stevensoniana.

Treze maneiras de olhar-se para um melro projeta um efeito visual que se reafirma a cada nova geração de leitores, combinando traços do imagismo de Pound e Amy Lowell na construção de um amplo painel sobre um fundo branco no qual pontifica, primeiro, o olho do melro, the eye, the self, o eu, uma consciência que logo se dissolve, recua e multiplica na amplidão do espaço, frágil figura negra, animada pelo espírito das criaturas que habitam o mesmo mundo em contraste com a fixidez geológica de um mundo congelado. Os versos livres e curtos são reminiscentes dos tanka e haikus japoneses, embora o próprio Stevens afirmasse que eram as estamparias japonesas que o haviam inspirado.

Em Quarto cinza Stevens compõe uma minúscula análise objetiva do que se presume ser uma mulher despida de quaisquer atributos que não sejam aqueles das coisas que a cercam e dos pequenos atos que exercita nesse seu espaço de espera, através dos quais é possível vê-la em seu ennui. A interrupção brusca e súbita da neutralidade da cena por uma voz que a argúi desde fora inflama de um só golpe o que era tão somente calmaria, introduzindo a questão do significado ao final do desfilar ritmado dos significantes.

Solilóquio final do amante interior é poema da complexa fase final stevensoniana e como tal tem originado as mais controvertidas leituras. Nele o poeta se arrisca mais que em qualquer outro na direção do reconhecimento de um mundo transcendente, porém a cada estrofe recupera o equilíbrio reintegrando a imaginação à alquimia interna e profunda do espírito terreno.

TREZE MANEIRAS DE OLHAR-SE PARA UM MELRO


I
Em meio a vinte montanhas nevadas,
A única coisa movente
Era o olho do melro
II
Eu estava pleno das três mentes
Qual uma árvore
Na qual há três melros
III
O melro rodopiava nos ventos de outono
Era uma pequena parte da pantomima
IV
Um homem e uma mulher
São um
Um homem e uma mulher e um melro
São um
V
Não sei que prefira,
A beleza das inflexões
A beleza das insinuações
O melro assobiando
Ou logo após
VI
Pingentes cobriam a longa janela
Com gelo selvagem.
A sombra do melro
Atravessava-a, pra lá e pra cá.
O ânimo
Escrevia na sombra
Uma indecifrável causa.
VII
Ó homens magros de Haddam,
Por que imaginais pássaros dourados?
Não vês como o melro
Anda a volta dos pés
Das mulheres acerca de vós?
VIII
Conheço nobres cadências
E lúcidos, inescapáveis ritmos;
Mas sei, também,
Que o melro está implicado
No que sei.
IX
Quando o melro voou a perder de vista,
Marcou a borda
De um entre muitos círculos.
X
À visão dos melros
Voando numa luz verde,
Mesmo as rameiras da eufonia
Gritariam esganiçadas.
XI
Ele atravessou toda Connecticut
Num coche de vidro.
Uma vez, um medo o trespassou

QUARTO CINZA

Embora habites um quarto que é cinza,
Exceto pela prata
Do papel de seda,
E roces
O teu pálido vestido branco;
Ou levantes uma das verdes contas
Do teu colar,
Para deixá-la cair em seguida;
Ou contemples o teu leque verde
Estampado com os rubros galhos de um salgueiro rubro;
Ou, com um dedo,
Movas a folha no vaso –
A folha que caiu dos galhos da forsítia
Ao teu lado...
O que é tudo isso?
Eu sei com que fúria bate o teu coração.

SOLILÓQUIO FINAL DO AMANTE INTERIOR

Acende a primeira luz da noite
na qual descansamos e, por razão pouca, refletimos
o mundo imaginado é o bem maior
Este é, assim , o mais intenso encontro.
É nessa ideia que nos reconciliamos,
Para além de toda indiferença, em coisa única:
Dentro de uma coisa, um único xale
Que nos envolve estreitamente, pobres que somos, um calor,
Uma luz, um poder, o milagroso influxo.
Aqui, agora, esquecemos um do outro e de nós mesmos.
Sentimos a obscuridade de uma ordem, de um todo,
Um saber, aquilo que preparou o encontro.
Em sua fronteira vital, no espírito.
Dizemos Deus e a imaginação são um . . .
Tão alta, a vela mais alta ilumina o escuro.
Desta mesma luz, deste espírito central,
Construímos uma morada no ar noturno,
Na qual estar ali juntos é o bastante.


Sueli Cavendish é professora do departamento de Letras da UFPE – Ensaísta e tradutora.