NA LAMA
Mô, se tu me ama
Me ajude quando estou na lama
Se tu me ama, mô
Me ajude quando estou na lama
Eu sou uma pobre lascada
Que não importa pra ninguém nada.
O agiota levou minhas últimas roupas
E o aluguel tá pra vencer
Mas eu preciso comprar uma chapinha
E de um trocado pra minha cervejinha.
Eu preciso de um trocado pra cervejinha.
CRUZ
Meu velho é um velho homem branco
E minha velha mãe é preta.
Se eu meu pai um dia amaldiçoei
Eu retiro o que um dia falei.
Se um dia eu tiver ofendido minha preta e velha mãe
E tiver desejado que ela fosse pro inferno,
Eu me desculpo pelo feio desejo
E agora que ela esteja bem é o que eu espero.
Meu pai morreu numa casa grande e boa.
Minha mãe morreu num antro.
Eu me pergunto onde morrerei eu
Se não sou nem preto nem branco.
BALADA PRA MENINA CUJO NOME É LASCADA
Uma menina com toda essa criação
É difícil de entender
Como ela pode se meter
Com um tipo de tão má reputação.
O cara pra quem ela deu tudo
Largou ela do nada.
Agora entre pessoas de bem
O nome de Dorotéia é Lascada.
Mas ninguém a viu derramar uma lágrima,
Nem a viu se lamentando.
Tampouco ninguém a ouviu dizer
Deus, eu preferia morrer!
Não! A rapariga está dizendo pro povo –
Como se ela não tivesse pecado –
Que se ela tivesse a chance
Faria tudo de novo!
BILHETE DE IDA
Eu pego minha vida
E levo comigo
E desembarco
Em Salvador, Caruaru,
Juazeiro, Santo Amaro
Qualquer lugar serve
No Norte e no Leste –
Tudo menos São Paulo.
Eu pego minha vida
E boto ela no trem
Para Petrolina, Sapé,
Piranhas, Teresina, Buriti Bravo,
Qualquer lugar serve
No Norte e no Oeste –
Tudo menos São Paulo.
Eu estou cansado
Das leis de Bolsonaro,
De pessoas cruéis
E cansadas,
Que lincham e fogem,
Elas com medo de mim
E eu com medo delas.
Eu pego minha vida
E levo para longe
Com bilhete só de ida –
Fui pro Norte
Fui pro Leste,
Fui!
PEQUENO POEMA (DE GRANDE IMPORTÂNCIA)
Eu queria que o dinheiro do aluguel
Fosse enviado do céu.
CONFUSO
Aqui à beira do inferno
Está o Ibura –
Lembrando de mentiras antigas,
Das rasteiras levadas,
O velho “tenha paciência”
que tanto nos disseram.
Claro que lembramos.
Agora, quando o dono da vendinha
Diz que o açúcar aumentou dois mirréis
E o pão um
E que há novos impostos sobre o cigarro –
Nós lembramos do emprego que nunca tivemos
E nunca conseguimos ter
E não conseguimos ter agora
Porque somos pretos.
Então a gente fica aqui
Às portas do inferno
No Ibura
E olhamos para o mundo
E pensamos
O que vamos fazer
Diante daquilo
Que lembramos.
CARTA
Mainha querida,
Depois de pagar o aluguel e a feira
E a energia não me sobra muita coisa
Mas aqui vão vinte reais pra senhora
Pra mostrar que ainda gosto da senhora.
Minha namorada envia beijos e diz
Que ela espera poder conhecer a senhora um dia.
Mamãe, tá caindo um toró danado
hoje. Pronto, é isso, vou ficando por aqui.
Seu filho caçula
Mais respeitável que nunca
José
CANÇÃO DE AMOR DA RADIOLA
Eu poderia pegar a noite em Água Fria
E te vestir com ela,
Pegar os letreiros de neon e te fazer uma coroa
Pegar os ônibus da Avenida Norte
Os táxis, os metrôs
E afinando a zuada deles, fazer uma canção de amor pra você.
Pegar o coração de Água Fria
E fazer uma batida
Colocar um disco, deixar rolar,
E enquanto a gente escuta o disco tocar,
Dançar com você até o sol raiar –
Dançar com você, minha menina negra e doce de Água Fria.
REDAÇÃO PARA AULA DE PORTUGUÊS
O professor disse
Vão pra casa e escrevam
Uma página de redação hoje à noite.
E deixem que a redação saia de dentro de vocês –
Assim, ela será verdadeira.
Eu fiquei pensando se isso era fácil de fazer.
Eu tenho vinte e dois anos, sou negro, nascido em Jaburu
Eu fui pra escola lá, depois em Caruaru, depois aqui
Nessa faculdade que fica no bairro nobre da cidade.
Eu sou a única pessoa negra da minha turma.
Os fundos do bairro nobre vão dar no Ibura
Por trás da via Mangue, eu percorro a Antônio Falcão,
Cruzo a Mascarenhas de Morais, a Avenida Recife, aí chego na UR-5,
Na Praça do UR-5 no Ibura, onde subo umas escadas
Até meu quarto, me sento, e escrevo o seguinte:
Não é fácil saber o que é verdade pra mim ou pra você
Aos 22 anos, minha idade. Mas eu acho que sou o que
Eu sinto e vejo e escuto, Ibura, eu te escuto:
Escuto eu, escuto você – nós dois – você, eu, falamos com essa página.
(Eu escuto Recife também). Eu – quem?
Bom, eu gosto comer, dormir, beber e de estar apaixonado.
Eu gosto de trabalhar, de ler, de aprender e de entender a vida.
Eu gosto de ganhar um Red Label no natal,
Ou discos – que podem ser de Bebe Rexha, de brega, ou de Bebel Gilberto.
Eu acho que ser negro não me faz não gostar
Das mesmas coisas que pessoas de outras peles gostam.
Então será que a página que eu escrevo será negra?
Sendo minha, não será branca.
Mas será
Parte de você, professor.
Você é branco –
E ainda assim uma parte de mim, assim como sou parte de você.
Isso é ser brasileiro.
Talvez às vezes você não queira ser uma parte de mim.
Muitas vezes eu também não quero ser parte de você.
Mas somos, e essa é a verdade!
Enquanto aprendo com você
Acredito que você aprende comigo –
Mesmo você sendo mais velho – e branco –
E de certa forma, mais livre.
Essa é minha redação para aula de português.
MEEIROS
Só um bocado de pretos
Indo para a plantação
Arando, plantando, capinando
Pra fazer render o algodão.
Depois que o algodão foi colhido
E a lida está terminada
O dono da terra leva o dinheiro
E nós não ficamos com nada,
Ficamos só com a fome, esfarrapados
Como antes.
Ano após ano se passa
E nós não somos nada
Além de um bocado de pretos
Indo para a plantação
Arando a vida afora
Pra fazer render o algodão.
NOTA DA TRADUTORA: "É A CIDADE NOSSO MAIOR AMOR"
É muito difícil dar conta da complexidade de Langston Hughes em 3 mil caracteres e meia dúzia de poemas, aviso logo! É que Hughes foi poeta, romancista, dramaturgo, jornalista e um dos fundadores do Renascimento do Harlem (Harlem Renaissance). Ativista político ligado ao Partido Comunista, ele visitou a União Soviética e os países da Ásia soviética já antes da Segunda Guerra Mundial, lutou no front antifascista da Guerra Civil espanhola e foi perseguido pela CIA por suas atividades políticas. Hughes nasceu em 1902 no estado do Missouri, filho de mãe negra e pai branco, e morreu no Harlem, o grande amor da sua vida, em 1967.
Conheci o poeta não em revista literária ou por indicação de colegas escritores – conheci Hughes em atividades da militância, e fui arrebatada por este misterioso autor, que segue relativamente desconhecido no Brasil. Vários fatores podem ser apontados como motivo para tanto, sendo o mais óbvio deles o racismo estrutural, que prioriza a edição de autores brancos. Mas especulo que outra razão seja a dificuldade em cooptar a sua obra. Dentro de um sistema econômico em que tudo vira commodity, dos afetos e às lutas por um mundo melhor, não se pode fazer pink washing e vendê-lo como autor queer, já que ele mesmo nunca assumiu publicamente sua homossexualidade; nem se pode vendê-lo como voz do movimento negro liberal já que, sendo comunista, sua crítica ao racismo passa por um recorte de classe que lembra Paulo Freire, o que pode ser incômodo para editores liberais. Outro aspecto, talvez, seja o fato de sua vasta obra ser um tanto irregular. O grande James Baldwin, por exemplo, achava que o texto de Hughes era alegre demais.
Ainda que seja uma obra com altos e baixos (aliás, qual obra não é irregular? Como diria o Conde do Brega, “ninguém é perfeito e a vida é assim”), os momentos em que alcança o topo criativo, Hughes é imbatível. Isso se dá exatamente quando ele não se exime de analisar as coisas mais mundanas ao redor dele – a violência policial, o racismo, a migração interna, a vidinha no bairro, as vizinhas fofoqueiras, as contas por pagar, a gentrificação, a falta de moradia. Quando no seu melhor, Hughes me lembra muito outro grande poeta negro ligado ao comunismo, o pernambucano Solano Trindade.
Mesmo nos momentos mais combativos ou melancólicos, a poesia de Hughes não deixa de ser aconchegante – e nem por isso menos transformadora, confrontando algumas verdades, revelando outras. Hughes era um desses poetas que sentia alegria em usar as palavras como são faladas, o que confere ainda mais potência aos poemas. Esse entusiasmo, e seu hábito de localizar os textos no tempo e no espaço, guiaram minhas traduções. Tento reproduzir a parte do entusiasmo, por exemplo, ao respeitar o esquema de rimas que há em alguns dos originais, que confere uma melodia que alude, até certo ponto, ao cordel e ao spoken word contemporâneos. Já a parte da localização geográfica se manifesta, nas traduções, de forma mais sem-vergonha. Pedindo licença poética ao camarada Hughes, decidi tirar os poemas do Harlem dos anos 1920 a 1960, e trazê-los para o Nordeste do Brasil, para a Região Metropolitana do Recife, em 2022. Fiz isso porque, além de comunistas, temos em comum o fato de que é a cidade o nosso maior amor – o Harlem dos anos 1920 sendo, para Hughes, o que o Recife dos anos 1990 foi para mim.