O mar é História é um poema do livro The poetry of Derek Walcott 1948-2013 (New York: Farrar, Strauss and Giroux, 2013). Walcott (1930-2017) foi poeta, dramaturgo e ensaísta, além de primeiro escritor nascido no Caribe a vencer o Nobel de Literatura (1992).
***
O MAR É HISTÓRIA
Cadê seus monumentos, batalhas, seus mártires?
Cadê sua memória tribal? Senhores,
naquele cofre cinza. O mar. O mar
os trancafiou. O mar é História.
No princípio era petróleo fervilhante,
denso como caos;
depois, feito luz no fim de um túnel,
a lanterna de uma caravela,
e eis o Gênesis.
Depois vieram os gritos empilhados,
a merda, os gemidos:
Êxodo.
Osso a osso soldado pelo coral,
mosaicos
cobertos pela bênção da sombra dos tubarões,
essa foi a Arca da Aliança.
Então surgiram das cordas dedilhadas
da luz solar no solo marinho
as harpas plangentes do cativeiro babilônico,
enquanto búzios brancos se apinhavam como grilhões
nas mulheres afogadas,
e aqueles foram os braceletes de marfim
do Cântico de Salomão,
mas o mar só virava suas páginas em branco,
procurando pela História.
Então vieram homens de olhos pesados como âncoras,
náufragos sem tumba,
bandoleiros que grelhavam gado,
deixando costelas calcinadas feito folhas de palmeira pela praia,
depois a pança espumosa, raivosa
da onda gigante engolindo Port Royal,
e isso foi o Jonas,
mas cadê a sua Renascença?
Senhor, está trancada nessas areias marinhas,
além da prateleira alvoroçada dos recifes,
onde as caravelas iam a pique;
ponham estes óculos de mergulho, os guiarei eu mesmo.
Lá tudo é sutil e submerso,
entre colunatas de coral,
passando os vitrais góticos das gorgonias marinhas
até onde a garoupa tosca, com olhos de ônix,
pisca, com o peso de suas joias, como uma rainha careca;
e essas cavernas com abóbadas de cracas
esburacadas como pedras
são nossas catedrais,
e a fornalha antes dos furacões:
Gomorra. Ossos moídos por moinhos de vento
viram calcário e fubá,
e assim foram as Lamentações —
foram só Lamentações,
não foram História;
então surgiu, como espuma no lábio seco do rio,
o restolho marrom das aldeias
cobrindo e solidificando-se em cidades,
e ao poente, coros de mosquitos
e, sobre eles, agulhas de campanários
perfurando o flanco de Deus
enquanto Seu filho se põe, e eis o Novo Testamento.
Então vieram as irmãs brancas aplaudindo
o progresso das ondas,
e isso foi a Abolição —
júbilo, Oh, júbilo —
súbito sumindo
enquanto tranças-de-sereias secam ao sol,
mas isso não foi História,
isso foi só fé,
então de cada rocha nasceu uma nação,
veio a assembleia de moscas,
veio a garça secretarial,
veio o sapo-boi coaxando por votos,
pirilampos com ideias brilhantes
e morcegos como embaixadores a jato
e o louva-a-deus, policial de farda cáqui,
e as lagartas peludas os juízes
examinando cada caso de perto,
e então nas orelhas morenas das samambaias
e na risada salina dos rochedos
com suas piscinas de maré, havia o som
como um rumor sem qualquer eco
de História, começando agora.