Abaixo você lê poemas do livro Post bellum, de Dragica Rajčić Holzner, em tradução de Adelaide Ivánova. Conheça mais sobre autora e obra na nota da tradutora após o último poema.
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Bósnia 92,93
dizem
que vai ficar tudo bem
acham
que a gente é burro, crianças estateladas no chão
um pedaço de terra
por causa um pedaço de terra
sinônimo de GUERRA
detergente pro cérebro
defender pátria mãetria irmãtria
paimãeirmã no enterro
chamam Teu nome filho único
traz teu registro de nascimento
para tua terra obituário significa
grito
não, obrigada
mantenha-se não-nascido filho meu
*
Bósnia 95
mais tarde vou sentir falta da palavra em latim
pra guerra
agora procuro a calça infantil
corto fora a perna direita
costuro a boca da calça
com linha invisível
na minha língua fica
ilêza
uma présse
inédita.
*
A guerra acabou. O irmão revela
Fotos no escuro.
O irmão ensina cachorro defeituoso
A perder medo.
A mãe acorda no meio da noite
Susto quieto.
O pai vende histórias
de ontem e hoje
vensedôr.
as Mulheres não têm ninguém por quem esperar.
O Filho brinca de mãos ao alto.
A filha nina uma pedra
e caso a pedra fique triste
ela desenha uma lágrima na pedra.
*
Expulsão
meu irmão soldado encontrou uma foto rasgada
do seu amigo no quarto e
mais tarde
quando atirou no próprio olho
tinha a foto do amigo no bolso
*
Gatorrato cachorro e
vegetariana esotérica
bombom e campos energéticos
Mulher precisa de novos pensamentos
(que Homens Pensam demais todos sabemos)
quando eu não quiser mais ir pra canto nenhum
e não tiver livro pra eu comer
quando eu jogar a televisão na parede
purquê ela disse
Teu país é um palco de guerra
e teu irmão está morto
quando eu não conseguir mais misturar a tinta do cabelo
e não tiver mais uma caixa postal
aí
eu escreverei POEMAS
como se eu fosse
o declínio da cultura
*
Ordem
as mulheres, crianças
dificultam o acesso à
zona de combate
puriço é exigido
que mulheres e crianças
sejam evacuadas
objetos peçoais serão
levados
dezobediênsia custará
vidas.
Seu defensor, Topusko, croácia
[Nota da tradutora] Como quem não quer morrer
Março de 2021 marca os 30 anos do início da Guerra Civil Iugoslava. Em uma década de conflito, cerca de 40% dos mortos foram de civis e estima-se que mais de 4 milhões de pessoas tiveram que deixar a região, tornando-se refugiadas de guerra. A poeta Dragica Rajčić Holzner foi uma delas. Nascida na cidade de Split, atualmente Croácia, ela deixou seu país natal em 1991, quando fugiu para a Suíça, levando consigo seus filhos. Em 2000, ela publica Post bellum (“Depois da guerra”, em latim), livro do qual estes poemas fazem parte.
Rajčić Holzner escreve como quem não quer morrer, antes de mais nada, mas existe uma espécie tédio desesperador nas suas poesias; o cansaço com o qual ela descreve a vida depois de uma guerra é desconcertante. A autora constrói imagens que são abandonadas ou interrompidas abruptamente, sem nenhuma revolta ou explicações ou motivos específicos, e a leitora que se vire pra juntar os cacos do que acabou de vivenciar.
Outra coisa digna de comentário é que Rajčić Holzner escreve como der, e para ontem, numa linguagem literalmente urgente — já que o alemão foi a língua que ela precisou domar, mais do que dominar, para poder sobreviver como poeta na Suíça. Ao escrever usando a língua que ela chama de “Gastarbeiterdeutsch” (“alemão de trabalhador imigrante”, numa tradução não-literal mas eficaz), a poeta produz “erros” gramaticais que são, por si só, um perigo — tanto pra quem lê quanto pra quem traduz. Esses “erros” são adaptações pragmáticas, instinto de sobrevivência: as palavras são escritas conforme sua sonoridade, não conforme sua aparência ou regra, e isso abre uma infinidade de neologismos e exercícios poéticos assustadores.
Em Bósnia 95, por exemplo, “prece”, cuja ortografia correta em alemão é “Gebet”, ganha um “t” a mais e vira “Gebett”, na versão Dragiciana — sendo que “Bett” é cama. Pode ser um “erro”, mas também pode ser uma alegoria (pois em alemão antigo, “Gebett” era roupa de cama, mas essa palavra não se usa mais, e eu fico me sentindo presa numa charada). Como traduzir tanta metáfora? Eu poderia escrever “prece” da forma como a palavra soa, ou tentar criar uma palavra nova, que misture o ato de rezar ao objeto no qual nos deitamos (onde fazemos tudo, menos dormir, sobretudo durante guerras e pandemias). Fiquei pensando muito em Madonna, a cantora, e em outras santas, em Nossa Senhora do Desterro, padroeira dos refugiados. Mas o poema não é meu, ainda que a tradução seja, e tentei controlar meus devaneios o mais que pude. Gebett virou então présse. Espero que a leitora consiga identificar, nas traduções, estes exercícios, sem se deixar levar por elitismos linguísticos.
Outra coisa digna de nota são os substantivos que, em alemão, são escritos com iniciais em maiúsculas. A poeta aplica essa regra ao seu bel prazer, fazendo com que, em certos poemas, palavras que deveriam ser escritas com maiúscula acabem ganhando um peso quase moral — como quando ela escreve “Filho” com maiúsculo, mas “filha” com minúscula, em [A guerra acabou. O irmão revela].