Ewa Lipska (1945) é uma das mais importantes poetas polonesas da atualidade. É autora de mais de trinta livros de poesia, recebeu vários prêmios poloneses e internacionais e foi traduzida para numerosos idiomas. Lipska foi amiga pessoal de Wisława Szymborska e é perceptível na sua poesia o diálogo com a Nobel polonesa e sua influência. As duas poetas primam pelo humanismo expresso de maneira concisa, precisa e lapidar. Os poemas de Lipska testam limites da linguagem sem abrir mão da clareza da mensagem. Sua linguagem abunda em paradoxos e metáforas, mas sua imaginação não foge dos elementos oníricos e surrealistas. A temática principal da sua poesia gira em torno da observação pessimista e irônica do ser humano, da sua condição existencial, da sua dificuldade em aprender as lições da História, da sua liberdade cerceada pela política e pelo mercado e do seu funcionamento em estruturas sociais. Por mais que sua poesia mais recente observe atentamente as transformações do mundo globalizado, da cultura, a relativização de valores e a solidão inerente ao mundo pós-moderno, Lipska pertence à geração da “Nova Onda”, que nasceu nos fins da Segunda Guerra e viveu na Polônia totalitária, estreando no final dos anos 1960 e rebelando-se contra a política e falta de liberdade. É de surpreendente atualidade sua poesia escrita naqueles tempos, assim como espanta a aguda capacidade de previsão encontrada em seus poemas mais recentes.
A prova
A prova de concurso para rei
calhou perfeitamente.
Inscreveu-se um certo número de reis
e um candidato a rei.
Escolheram para rei um certo rei
que era para ser o rei.
Recebeu uma pontuação extra pela procedência
pela educação espartana
e pelo sorriso
que cativou todos como um cabresto
Respondia às perguntas de história
com uma notável capacidade de calar.
A língua obrigatória
acabou sendo a dele mesmo.
Quando falou sobre arte
tocou o coração da comissão.
O coração de um dos membros da comissão
foi tocado um tiquinho forte demais.
Sim
com certeza ele era o rei.
O presidente da comissão
foi correndo buscar a nação
para poder solenemente
outorgá-la ao rei.
A nação
era encapada
com
pele.
(1978)
Vírus
Cara senhora Schubert, meu vizinho microbiólogo conduz experimentos sobre os vírus mortíferos que ele cria nos marcadores de livros. Ele sonha com uma pandemia literária, que poderia tragar milhões de vítimas. Ultimamente é raro que eu o veja. Parece que viajou para a cidade Quarentena, onde, longe dos cenários nefastos, suspeita de si mesmo pela infectada mutabilidade do destino.
(2013)
Certeza
Já houve uma prova de história assim
quando todos os alunos de uma vez foram reprovados.
E restou deles um solene cemitério.
Não há certeza de que tenha sido uma prova.
Não há certeza de que todos tenham sido reprovados.
Há certeza de que restou deles um solene cemitério.
Já houve um amor assim.
Mas não há certeza de que tenha sido nosso.
Já houve pessoas assim.
Mas não há certeza de que tenham sido nós.
Já houve pteranodontes voadores assim.
Mas não há certeza de que tenha sido nos nossos tempos.
Já houve um idioma assim.
Mas não há certeza de que o tenhamos falado.
Já houve um silêncio assim.
Mas não há certeza de que tenha sido entre nós.
Já houve o fim do mundo.
Mas não há certeza de que tenha sido o nosso mundo.
E restou dele um solene cemitério.
Há certeza de que restou dele um solene cemitério.
(1972)
Mensagem
Escrever de forma que o miserável
pense que é dinheiro.
E aqueles que agonizam:
que é aniversário.
(1974)
Razão
Infalível
em confundir opiniões
em provas irrefutáveis
que contradizem umas às outras.
Em compassos
tirados do prumo
Há em ti cada vez menos
leucócitos de luz
Nada mais te iluminará
Salvo a treva, talvez.
(1978)
Permita-se por fim uma ação humana.
Não seja póstumo.
Permita-se um interesse vivo.
Não abuse da morte.
Permita-se por fim
a vitória sobre
o túmulo.
Não se distinga com
a cruz.
Mesmo numa ampulheta fechada
acontece o deserto.
(1978)
Dúvida
Creio na dúvida,
livre do vício da fé.
Na ausência da vida
mortalmente hesito.
(2002)
O Dia dos Vivos
No Dia dos Vivos
os finados visitam seus túmulos
— acendem os neons
e escavam os crisântemos das antenas
nos telhados de seus jazigos multiandares
com calefação central.
Depois
descem nos elevadores
até seu trabalho cotidiano:
até a morte.
(1974)
A avaria do mundo
Está chegando a avaria do mundo. Mas por ora ainda dormita
preguiçosa entre os arbustos.
Ronronam os violoncelos de capins desafinados.
O céu já desarmado. O relâmpago
finge ser luminária na noite. Ainda o trovão ao longe.
Esperamos que passe longe da nossa aldeia.
Vamos tomar cerveja no boteco vizinho.
Ainda a lua jogada no rio.
Ainda nada acontece.
Comemos amor. Cuspimos sementes.
Olhamos para a sucata do cemitério.
Mais ou menos mortos. Mas nada mais.
(2017)