Irit Amiel nasceu em 1931, como Irena Librowicz numa família de origem judia em Częstochowa (Polônia). Ao imigrar para Israel mudou seu nome, como tantos fizeram: passou a ser cidadã israelense e a se chamar Irit Amiel. É poeta e prosadora que escreve em polonês e hebraico, idiomas para os quais também traduz textos. É sobrevivente do gueto de Częstochowa. Seus familiares mais próximos foram vítimas do Holocausto. Em Israel viveu primeiramente, depois da imigração ilegal em 1947, num kibutz e hoje reside em Tel Aviv com filhos e netos. Estreou como escritora aos 63 anos de idade, em 1994. Desde então publicou cinco livros de poesia: Egzamin z Zagłady (A prova de Holocausto, 1994), Nie zdążyłam (Não cheguei a tempo, 1998); Tu i tam (Aqui e lá, 1999); Wdychać głęboko (Inspirar profundamente, 2002); Spóźniona (Atrasada, 2016). Publicou dois livros de contos: Osmaleni (Chamuscados, 1999) e Podwójny krajobraz (A paisagem dupla, 2008), além de um livro autobiográfico, Życie tytuł tymczasowy (A vida. Um título provisório, 2014). Suas obras poética e prosaica compartilham características semelhantes. A poesia une narrativa condensada com flashes de associações e conclusões inesperadas. A prosa, muito concisa e precisa, é escrita de maneira quase poética. Os seus temas são o testemunho autobiográfico e o das histórias dos “chamuscados”, termo que a autora cunhou para os sobreviventes do Holocausto. O Extermínio, um estigma indelével, faz com que a sobrevida dos “chamuscados” os obrigue a conviver com a constante companhia de memórias traumáticas, escolhas duvidosas e o misto de culpa e alegria de conseguir escapar com vida. Essa marca da morte que se põe com a sombra eterna sobre suas vidas e o testemunho dessa vivência são o cerne da obra de Irit Amiel. Os poemas aqui apresentados pertecem ao livro da estreia da autora em português, Não cheguei a Treblinka a tempo, publicado pela Editora Dybbuk no mês passado.
NÃO CHEGUEI A TEMPO
Não cheguei a Treblinka [nota 1] a tempo
atrasei uns cinquenta anos
as árvores estavam nuas pois era outono
Quis fugir de imediato porque
como adereço lá estava um trem enferrujado
e a floresta sussurrava mansamente.
Estava bonito cinza calmo vazio
e só o vento roçava a terra as árvores
as pedras e nós
apagando a nossa vela
vez após vez
E Dita disse – está vendo que bom que você não chegou a tempo
e agora você é a minha velha mãe e me abraçou com força
e riu tristemente.
O FILME
Olhando na tela o filme Shoah [nota 2]
pela primeira vez com todos os sentidos
compreendi como morreu minha mãe
Sempre soube chegar com ela até o trem
várias vezes no sonho fui com ela no vagão
Mas nunca consegui desembarcar em Treblinka
Tudo era definitivo mas enevoado
E somente na escura sala climatizada
do museu de Tel Aviv num quente dia israelense
estive junto com ela nesse tubo
E ela nua raspada sentada encolhida
numa poça de sangue e fezes seus e alheios
Esperando sua vez na fila para a câmara de gás
para ali loucamente escalar as paredes
e como um animal ferido arranhar a parede numa selvagem caça
do último suspiro de oxigênio e inspirar zyklon3
amontoada no horrendo emaranhado dos corpos humanos
consciente de que nunca sairia de lá
E eu queria tanto que ela soubesse
que a amo muito
e que eu envelhecerei
DESCULPAS
Voltei para o gueto com piolhos.
Meus Pais não existiam mais
e o gueto ficou sem crianças.
Szlamek me procurou embora
tivéssemos brigado ainda
antes da ação, porque eu não podia
lhe contar
o que a Professora tinha falado sobre menstruação
e como e para que os filhos são feitos.
Szlamek veio pedir desculpas
com dois broches
contrabandeados, como aqueles da minha
coleção de antes da guerra;
Chapeuzinho Vermelho
e Lobinho Mau.
Pedimos desculpas um ao outro
e nos despedimos
e Szlamek disse
– não somos mais crianças
e não vale a pena morrermos brigados –
JONA
Quando morreu de aids em Tel Aviv
o aposentado sexagenário Jona
ninguém suspeitou que um dia
no fim da guerra de seis anos [nota 4]
Jona saiu do armário de vestido
com duas tranças louras
e nem ele mesmo sabia
se era menino ou menina
Jona cortou o cabelo rente
aprendeu a urinar em pé
foi aos bordéis e voltou
desesperado
Depois com a garganta apertada
desceu do navio na Terra Prometida
e entrou no armário onde ficou
até o fim sem nunca mais ver
um raio de sol
GABRIEL
Ontem em Dizengoff Center [nota 5] encontrei
o último homem vivo no mundo
que fugiu a tempo
do Sonderkommando [nota 6] de Treblinka.
Ia empurrando o carrinho iluminado
com o sorriso de seu primeiro bisneto
e eu pensava naqueles carrinhos que
ele outrora arrastou por lá.
Ainda bonito forte e bronzeado
sorriu para mim alegremente,
como então, quando voltou sorrindo e dizendo:
poderia ter trazido para você um punhado de brilhantes
mas preferi vir até você
nu e limpo como uma lágrima.
NOTAS
1. Treblinka foi um campo de extermínio instalado pelos nazistas na Polônia ocupada (1939-1945).
2. Dirigido por Claude Lanzmann (1925-2018), Shoah (1985) é um importante documentário centrado em entrevistas com sobreviventes e testemunhas do Holocausto, além de trazer, também, falas dos agentes de campos de extermínio instalados na Polônia ocupada.
3. Gás letal usado pelos nazistas nos campos de extermínio de Auschwitz e Majdanek. Em Treblinka, era usado o gás liberado por motores dos tanques de guerra.
4. Por “guerra de seis anos” a autora se refere à Segunda Guerra Mundial, incluindo-a simbolicamente, por alusão à Guerra dos Seis Dias (1967), entre as guerras judaicas.
5. Shopping em Tel Aviv.
6. Sonderkommando: grupo especial de judeus nos campos de extermínio que se ocupavam em queimar os corpos e limpar as câmaras de gás.