O poeta, carpinteiro, ensaísta, romancista e jornalista norte-americano Walter Whitman Jr. nasceu em 31 de maio de 1819, em Huttington, no estado de Nova York, descendente de ingleses e holandeses que já viviam no território americano desde o século XVI. Teve apenas seis anos de educação formal, até deixar os estudos aos 11 anos e começar a trabalhar como office-boy. Aos 13, entrou na carreira de tipógrafo para um jornal, onde começaria o autodidatismo que levaria pela vida, entre ruas e livros, poesia e jornalismo, carpintaria e filosofia. Aos 23, ele estreou na literatura com o romance (Franklyn Evans, ou o ébrio), obra pífia, mas que vendeu surpreendentes 20 mil exemplares, um número que ele nunca viria a alcançar em vida com a poesia. Foi apenas quando tinha 36 anos que Whitman publicou a primeira edição de Leaves of grass, um dos maiores marcos de toda poesia moderna ocidental, com sucesso em vida (acompanhado de muitas críticas e embates), a ponto de receber nove edições do autor, até sua morte em 1892, em Camden, o estado de New Jersey.
O livro foi tradicionalmente traduzido em língua portuguesa como Folhas de relva ou Folhas de erva (em Portugal) e já recebeu inúmeras versões no Brasil e em Portugal. No entanto, percebo que até hoje a obra permanece muito menos lida do que o esperado, talvez porque, com certa frequência, lembramos dela apenas como uma revolução métrica, já que Whitman é o inventor do verso livre moderno, um modelo calcado em paralelismos, anáforas e aliterações. Esse tipo de verso dialoga bastante os versículos da Bíblia e o ritmo da performance vocal; ou seja, o verso livre whitmaniano é um convite à fala e ao espaço público, como vemos em seu poema mais conhecido, a Canção de mim mesmo (Song of myself). No entanto, apesar de muito traduzido ao português, poderíamos dizer que Whitman é mais lido aqui nos seus grandes discípulos, dos quais dois merecem destaque: o heterônimo Álvaro de Campos, de Fernando Pessoa, e Jorge de Lima, sobretudo aquele de Mira-Celi. Quero com isso dizer que as traduções de Whitman parecem não ter realizado plenamente o impacto possível com um poeta desse tamanho; tudo indica que aprendemos apenas a forma whitmaniana, do verso longo modernista, mas pouco atentamos para o resto da sua poética, que contém uma ética e uma política no mínimo singulares, fundamentais para o momento em que vivemos.
Na verdade, Whitman é uma potência revigorante de vínculos humanos. É o cantor por excelência da confiança de se estabelecer uma democracia como convívio entre seres diferentes e irredutíveis que, ao mesmo tempo, se reconhecem numa partilha. Daí vem a necessidade de escrever num verso que já não se estabelecia como prática aristocrática, mas se abria democraticamente para um público amplo. Isso se dá tanto na forma quanto no conteúdo e também nos usos da linguagem, que passa a incorporar gírias, termos indígenas e afro-americanos, mas também técnicos, científicos, produzindo uma democracia em língua, porque arrasa as hierarquias das poéticas tradicionais mais conservadoras. Por apostar na vida como um fluxo e contradições, Whitman permanece sendo um poeta para multidões, e isso sem fazer concessão ao pensamento simplório ou ingênuo. Para além disso, foi ainda capaz de cantar o próprio homoerotismo em séries como Cálamo, com uma coragem absolutamente fora da curva de seu tempo; além de anotar encontros com homens e rapazes em seus cadernos, hoje de conhecimento público. Seu otimismo, mesmo tendo visto de perto a Guerra Civil e seu horror, quando era auxiliar de enfermagem nas forças do Norte, não tem nada de Pollyanna; pelo contrário, é um motor que buscar agir no mundo. Há em sua poética revolucionária uma política revolucionária que não caberá jamais em puras agendas partidárias: essa política é a do vínculo. Nós, assim como vários de seus poemas, somos como folhas de capim que se entrecruzam rizomáticas, sem podermos nos considerar indivíduos atomizados e incomunicáveis.
Penso que uma afirmação dessas é, mais do que nunca, necessária em tempos de cisão dos elos sociais e de desapontamento geral com a potência de uma política séria. Alguém pode dizer que usar Whitman é tirá-lo de seu contexto. Creio que, pelo contrário, usá-lo é plenamente dar-lhe vida em meio aos vivos. A poesia sem P maiúsculo, como lembrava Nicanor Parra: Os poetas desceram do Olimpo. Whitman sempre escreveu diante do presente, respondendo ao que acontecia consigo e com seu país e conterrâneos, fazendo da poesia uma arma política de engajamento e ação. Penso, cada vez mais, que a tradução, tanto quanto a escrita de obras novas, tem o dever de encarar essa face de seu dom: tudo é o presente. E, contrariando a lógica aristotélica, entendo que, ao traduzir, é preciso desdobrar o anacronismo com condição mesma de uma escrita: atentar ao inglês norte-americano de Whitman na segunda metade do século XIX com um olhar agudo ao português brasileiro do século XXI. Assim é possível produzir poesia e ação no presente do traduzido, em vez de apenas prestar honras aos mortos.
Isso não quer dizer apenas que devemos incensar Whitman e fazê-lo viver acriticamente no presente; uma leitura mais atenta e detalhada teria de passar por assuntos espinhosos ainda pouco tratados no Brasil, como a adesão do poeta à doutrina imperialista do Destino Manifesto, que defendia que os norte-americanos dominariam, por decisão divina, o resto do mundo. Dessa maneira, portanto, podiam e deviam ocupar ou anexar mais e mais territórios. Do mesmo modo, apesar de incorporar muitos termos ameríndios e demonstrar interesse pelos nativos, como a maior parte de seus contemporâneos brancos, Whitman se importou pouco com as tomadas de terras, os massacres e a perseguição contínua ao longo do séc. XIX. Era, para o bem e para o mal, um homem de seu tempo. Por isso penso que tirar os poetas do Olimpo é também olhar os fracassos, os erros que carregam em seus olhos, corpos, textos; mas não abandoná-los.
Para deixar a ideia mais detalhada, preciso, ainda que de modo muito incompleto e parcial, expor como entendo que o poeta foi traduzido ao português, e não foram poucas traduções; pelo contrário, Leaves of grass é um dos livros mais traduzidos no Brasil, seja em alguma das edições completas, seja em antologias. Mas duas frentes contrastivas assumiram, com frequência, os projetos tradutórios, uma beletrista (sem acepção negativa em si) e outra literalista. Desde a primeira tradução publicada em livro no Brasil, a Saudação ao mundo e outros poemas (1944), de Mário Dias Ferreira dos Santos, passando pelas Cantos de Whitman (1946) de Oswaldino Marques, ou pelos Três poemas de Walt Whitman (1957) de Câmara Cascudo, até a versão mais difundida das Folhas das folhas de relva (1964, com várias reedições), de Geir Campos, o que temos é uma série traduções que tornam Whitman mais literário, “poético” num certo senso comum. Traduções que apresentam elevação da linguagem, uso constante de “tu” e “vós”, ou seja, um modelo de poética que muitas vezes contraria precisamente o experimento whitmaniano de fundir tudo. Por outro lado, temos traduções mais prosaicas, como as Folhas de relva - Edição do leito de morte (2011), de Bruno Gambarotto e Folhas de relva (em sua versão definitiva, a “do leito de morte”) (2017) de Gentil Saraiva Jr., que, se deixam de lado poeticismos, acabam muitas vezes prosificando completamente a obra, para dar conta da semântica. Dessa maneira, o resultado é paradoxal: vocabulários por vezes mais comedidos, com o intuito de comunicar o texto inglês ao leitor brasileiro. A mais infeliz dessa estirpe é certamente Folhas de relva (2005), de Luciano Alves Meira, que se alonga em construções travadas e confusas.
O único caso que julgo escapar dessa dicotomia é o precioso trabalho de estudo e tradução realizado por Rodrigo Garcia Lopes, com Folhas de relva: a primeira edição (1855), publicada em 2005, na comemoração dos 150 anos do livro; aqui a linguagem desce muitas vezes ao chão e retorna às alturas, numa fusão impressionante de registros e tons. Por isso, até hoje, acho uma pena que o poeta-tradutor não tenha feito mais trabalhos com Whitman, já que vários poemas absolutamente clássicos não estavam na primeira edição, como é o caso da Canção da estrada aberta. Um outro caso marcante são as traduções que Adriano Scandolara publicou em 2012, no blog escamandro, com 12 poemas breves e um longo; se continuasse, certamente faria uma pérola para dialogar com o trabalho de Garcia Lopes.
É diante dessa curiosa lacuna que observo a necessidade em traduzir e retraduzir Walt Whitman: muitos poemas fundamentais ainda não receberam uma versão poética de peso, que tente recriar a vitalidade e o impacto do texto inglês. Se posso ter a liberdade, sinto que ainda poderíamos radicalizar um pouco os procedimentos, quando possível, ampliar o escopo das 13 mil palavras do repertório de Whitman num português ainda mais dinâmico, ainda mais próximo da vida. Eu começaria trocando “relva” por “capim”, esse que nasce nos pastos, mas também nos quintais e terrenos baldios do país inteiro, que rompe calçamentos. Capim, essa palavra de origem indígena ka’pii, o “mato fino” que cresce na mata e na beira da estrada aberta, em variedades importadas e autóctones.
Este ano comemoramos 200 anos de seu nascimento. Por isso, estou traduzindo, relendo, repensando e revocalizando os versos de Whitman para uma edição que sairá pela Editora 34 até o fim do ano; depois de traduzir alguns poemas curtos deste que chamo Folhas de capim para o jornal Plural e de apresentar alguns de cunho mais político no Coletivo Práxis, apresento aqui a tradução de um poema longo e seriado, a Canção da estrada aberta (Song of the open road). Porque desejo, ao verter Whitman num português brasileiro, reescutar os ritmos de uma voz pulsante para além do papel. Porque anseio com que seja um convívio que extrapole o puro jogo literário, porque procuro ampliar, conectar, fundir, expandir esses rizomas.
Canção da Estrada Aberta
1
A pé, de peito leve, eu pego a estrada aberta,
Sadio, livre, o mundo à minha frente,
A longa via ruça à minha frente leva aonde eu queira.
Daqui pra frente não peço por sorte, a sorte sou eu,
Daqui pra frente não choramingo mais, não adio mais, careço de nada,
Chega de lamentos caseiros, bibliotecas, críticas cretinas,
Forte e alegre eu sigo a estrada aberta.
A terra é quanto basta,
Eu não quero as constelações mais perto,
Sei que estão muito bem onde estão,
Sei que bastam pra quem pertence a elas.
(Ainda assim cá trago meus velhos doces fardos,
Trago, homens e mulheres, trago comigo aonde for,
Juro que é impossível me livrar deles,
Estou cheio deles e em troca vou enchê-los.)
2
Você, estrada que eu adentro e espio, acho que você não é tudo por aqui,
Acho que tem muita coisa invisível por aqui,
Aqui a profunda lição de acolhimento, nem preferência nem recusa,
O negro de cabeça lanosa, o criminoso, o doente, o analfabeto não são recusados,
O parto, a corrida atrás do médico, a marcha do mendigo, o tropeço do bêbado, a gargalhada dos mecânicos,
O jovem foragido, o carro do rico, o dândi, o casal fugitivo,
O vendedor madrugueiro, a funerária, a mudança [de móveis pra cidade, o retorno da cidade,
Eles passam, eu também passo, qualquer coisa passa, ninguém será barrado,
Ninguém, mas são aceitos, ninguém, mas me são caros.
3
Você, ar que me dá fôlego pra fala!
Vocês, objetos que convocam da dispersão meus significados e lhes dão forma!
Você, luz que me envolve e as coisas todas numa garoa uniforme e delicada!
Vocês, caminhos gastos em buracos irregulares dos acostamentos!
Acho que vocês estão latentes de existências invisíveis, me são tão caros.
Vocês, calçadas sinalizadas das cidades! vocês, sarjetas resistentes!
Vocês, balsas! vocês, pranchas e postes dos cais! vocês, flancos de madeira! vocês, barcos distantes!
Vocês, filas de casas! vocês, fachadas ajaneladas! Vocês, telhados!
Vocês, varandas e entradas! Vocês, cimalhas e grades de ferro!
Vocês, janelas cujas conchas expõem tanta coisa!
Vocês, portas de degraus ascendentes! vocês, arcos!
Vocês, pedras cinzas de pavimentos intermináveis! Vocês, encruzilhadas batidas!
De tudo que lhes tocou, acho que vocês transmitiram para si próprios e agora
secretamente me transmitiriam o mesmo,
Com mortos e vivos vocês povoaram suas superfícies impassíveis, e os espíritos assim seriam evidentes e amigáveis
[comigo.
4
A terra que se expande à direita e à esquerda,
A imagem viva, cada parte na melhor luz,
A música que cai onde é desejada e para onde não é desejada,
A voz eufórica da estrada pública, o sentimento alegre e vivo da estrada.
Ah, rodovia que cruzo, você me diz: Não me deixe?
Diz: Não se atreva — se me deixar, está perdido?
Diz: Já estou preparada, sou bem batida e inegável, vem me aderir?
Ah, estrada pública, eu rebato: Não tenho medo de te deixar, mas te amo,
Você me expressa melhor do que posso me expressar,
Vai ser mais pra mim que o meu poema.
Penso que os feitos heroicos foram todos concebidos ao ar livre, como os poemas livres,
Penso que eu bem poderia parar aqui, fazer milagres,
Penso que devo gostar de tudo que topar na estrada, e quem me vir vai gostar de mim,
Penso que quem eu vir está feliz.
5
De agora em diante me declaro livre dos limites e linhas imaginárias,
Vou aonde apraz, meu próprio mestre total e absoluto,
Ouço os outros, matuto no que dizem,
Paro, busco, acolho, contemplo,
Gentil, mas com ímpeto inegável, me livro das amarras que me amarrariam.
Inspiro grandes lufadas de espaço,
Leste e oeste são meus, e norte e sul são meus.
Sou maior, melhor do que pensava,
Eu não sabia que detinha tanto bem.
Tudo parece lindo,
Posso repetir aos homens e mulheres: Você me fez tão bem, eu faria o mesmo pra você,
Vou recrutar a mim e a você na passagem,
Vou me espalhar entre homens e mulheres na passagem,
Vou jogar nova satisfação e rudeza entre eles,
Quem me nega isso, não vai me perturbar,
Quem me aceita, ele ou ela seja abençoado e me abençoe.
6
Hoje se aparecessem mil homens perfeitos não me espantaria,
Hoje se aparecessem mil lindas formas femininas não me admiraria.
Hoje vejo o segredo pra fazer as melhores pessoas,
É crescer ao ar livre e comer e dormir com a terra.
Aqui tem espaço um grande feito pessoal
(Esse fato arrebata os peitos de toda a raça humana,
Sua efusão de força e ímpeto esmaga a lei e ri de toda autoridade e argumento contra si).
Aqui está o teste da sabedoria,
Sabedoria não se testa nas escolas,
Sabedoria não se passa de quem tem pra quem não tem,
Sabedoria é da alma, insuscetível a prova, é a própria prova,
Se aplica a todos os estágios e objetos e qualidades e se contenta,
É a certeza da realidade e imortalidade das coisas e da excelência das coisas;
Tem algo no flutuar da visão das coisas que a convoca pra fora da alma.
Hoje reconsidero filosofias e religiões,
Podem se sair bem em salas de aula, sem provar nadinha sob as amplas nuvens, entre a paisagem e o fluxo das
[correntes.
Aqui está a realização,
Aqui um homem contado — aqui percebe o que traz em si,
O passado, o futuro, majestade, amor — se estão sem você, você está sem eles.
Só o cerne de cada objeto nutre;
Onde está quem arranca as cascas pra você e eu?
Aqui está a aderência, não foi moldada previamente, é particular;
Você sabe o que é passar e ser amado por estranhos?
Você sabe a conversa daqueles olhos revirados?
7
Aqui está o efluxo da alma,
O efluxo da alma vem de dentro de portões pergolados, sempre provoca questões,
Esses anseios, por quê? essas ideias no escuro, por quê?
Por que existem homens e mulheres que, perto de mim, a luz do sol expande meu sangue?
Por que quando me deixam, meus estandartes de alegria afundam lisos e planos?
Por que existem árvores que nunca passo por baixo, mas ideias largas e melódicas descem sobre mim?
(Acho que ali pendem inverno e verão naquelas árvores e sempre deitam frutos quando passo);
O que é isso que tão súbito eu troco com estranhos?
O quê, com um motorista, quando sigo no assento a seu lado?
O quê, com um pescador que puxa a rede na praia enquanto eu ando e paro?
O que me liberta à boa vontade de uma mulher ou homem? o que os liberta à minha?
8
O efluxo da alma é felicidade, aqui está a felicidade,
Penso que impregna o ar livre, espera a todo instante,
Hoje flui em nós, merecemos essa carga.
Aqui cresce o caráter fluido e conector,
O caráter fluido e conector é o frescor e doçura de homem e mulher,
(As ervas da manhã não brotam mais frescas e doces a cada dia pelas próprias raízes do que ele brota continuamente
[fresco e doce de si próprio).
Rumo ao caráter fluido e conector se exala o suor do amor de jovens e velhos,
Dele cai destilado o encanto que ri da beleza e dos feitos,
Rumo a ele se atira a tremente dor que anseia por contato.
9
Allons! seja você quem for, viaje comigo!
Viajando comigo vai achar o que não se cansa.
A terra não se cansa,
A terra é rude, calada, incompreensível de cara, a Natureza é rude e incompreensível de cara,
Não se desanime, siga em frente, tem coisas divinas bem encobertas,
Te juro que tem coisas divinas mais lindas do que dizem as palavras.
Allons! não devemos parar aqui,
Por mais doces que sejam as lojas telhadas, por mais conveniente que seja o abrigo, não podemos ficar aqui,
Por mais protegido que seja o porto, por mais calmas que sejam as águas, não devemos ancorar aqui,
Por mais gentil que seja a hospitalidade que nos cerca só nos cabe recebê-la por um breve instante.
10
Allons! os incentivos serão maiores,
Vamos velejar por mares ínvios e selvagens,
Vamos aonde ventos sopram, ondas batem e o clíper yankee acelera a plenas velas.
Allons! com poder, liberdade, a terra, os elementos,
Saúde, ousadia, alegria, autoestima, curiosidade;
Allons! de todas as fórmulas!
De todas as suas fórmulas, ô padres materialistas com olhar de morcego.
O cadáver mofado bloqueia a passagem — o enterro não espera mais.
Allons! mas fique atento!
Quem viaja comigo carece do melhor sangue, músculo, vigor,
Ninguém chegue ao julgamento até que ele ou ela traga coragem e saúde,
Nem venha aqui você que gastou o melhor de si mesmo,
Só podem vir aqueles que vêm em corpos doces e determinados,
Nenhum doente, manguaceiro de rum ou ranço venéreo é permitido aqui.
(Eu e os meus não convencemos por argumentos, símiles, rimas,
Convencemos por nossa presença)
11
Escute! vou ser honesto com você,
Não ofereço os velhos prêmios mansos, mas ofereço rudes prêmios novos,
Estes são os dias que vão te acontecer:
Você não vai empilhar o que chamam de riquezas,
Você vai espalhar com mão pródiga tudo que ganhar e alcançar,
Você mal chega à cidade destinada, mal se aninha na satisfação, antes que te chamem num chamado irresistível de
[partida,
Você vai receber ironia e zombaria de quem fica pra trás,
Os acenos de amor que você ganhar só vai responder com beijos de partida apaixonados,
Você não vai tolerar a amarra de quem lhe estica as longas mãos.
12
Allons! atrás dos grandes Companheiros e de pertencer a eles!
Eles também estão na estrada — os homens ágeis, majestosos — as melhores mulheres,
Que gozam a calmaria dos mares e a tempestade dos mares,
Marujos de muitos barcos, andantes de muitas léguas,
Habitués de muitas pátrias distantes, habitués de abrigos longínquos,
Fiadores de homens e mulheres, observadores de cidades, batalhadores solitários,
Paradores e contempladores de tufos, flores, conchas do mar,
Dançarinos de casamentos, beijoqueiros de noivas, tenros ajudantes de crianças, geradores de crianças,
Soldados de revoltas, guardas de cova aberta, descedores de caixão,
Viajantes de estações consecutivas, anos a fio, curiosos anos que emergem do precedente,
Viajantes com companheiros, a saber, as próprias diversas fases,
Avançadores da latente infância irrealizada,
Viajantes alegres com o próprio viço, viajantes de virilidade barbada e cultivada,
Viajantes de feminilidade, ampla, insuperável, contente,
Viajantes com a sublime velhice da virilidade e feminilidade,
Velhice, calma, alargada, ampla com a arrogante amplidão do universo,
Velhice, fluindo livre na deliciosa liberdade próxima da morte.
13
Allons! ao infinito tanto quanto incomeçado,
Aguentar muito, errâncias de dias, descansos de noites,
Fundir tudo na viagem a que tendem e os dias e as noites a que tendem,
De novo fundi-los no início de jornadas superiores,
Ver em qualquer parte nada além do que pode alcançar e passar,
Conceber tempo algum, por mais distante, além do que pode alcançar e passar,
Procurar estrada alguma além da que se alonga e espera por você, mesmo que distante, mas que se alonga e espera por
[você,
Ver ser algum, nem mesmo de Deus, mas você segue além,
Ver posse alguma além da possuível, gozando de tudo sem labuta ou compra, abstraindo do festim sem abstrair uma
[partícula que seja,
Tirar o melhor da fazenda do fazendeiro e da chique mansão do rico e das castas bênçãos dos bem-casados e dos frutos
[dos pomares e flores dos jardins,
Tirar sustento das cidades compactas por onde passa,
Levar prédios e ruas contigo depois aonde quer que vá,
Colher as mentes dos homens de seus cérebros quando encontrá-los, colher o amor de seus corações,
Tirar os teus amores para a estrada contigo, por tudo que deixa pra trás pra eles,
Conhecer o próprio universo como estrada, muitas estradas, estradas de almas viajantes.
Tudo parte para o progresso das almas,
Toda religião, todas as coisas sólidas, artes, governos — tudo que era ou é aparente neste globo ou qualquer globo
[cai em nichos e recantos perante a procissão das almas pelas imensas estradas do universo.
Do progresso das almas de homens e mulheres pelas imensas estradas do universo, qualquer outro progresso é o
[emblema e sustento necessário.
Sempre vivos, sempre adiante,
Faustosos, solenes, tristes, reclusos, perplexos, loucos, inquietos, frágeis, insatisfeitos,
Desesperados, arrogantes, carinhosos, doentes, aceitos e negados pelos homens,
Eles vão! eles vão! eu sei que eles vão, mas não sei aonde vão,
Mas sei que vão rumo ao melhor — rumo a algo grandioso.
Seja você quem for, avance! homem, mulher, avance!
Não fique aí dormindo e enrolando pela casa, mesmo se você a construiu, ou se a construíram pra você.
Saia desse confinamento escuro! saia de trás da tela!
Protestar não vale nada, eu sei tudo e te mostro.
Veja através de você tão ruim quanto o resto,
Através do riso, da dança, da janta, da ceia do povo,
Dentro das roupas e enfeites, dentro dos rostos lavados e asseados,
Veja um asco e desespero, secretos e calados.
Nenhum marido ou esposa ou amigo confiável pra ouvir a confissão,
Um outro eu, um duplo de cada um, oculto e escondido segue,
Sem forma, sem palavras pelas ruas das cidades, polido e manso nos salões,
Nos vagões das ferrovias, nos vapores, na assembleia pública,
Lar para as casas de homens e mulheres, à mesa, no quarto, em toda parte,
Esperto nas vestes, vulto sorrindo, empertigado, morte sob o esterno, inferno sob o crânio,
Sob o pano grosso e luvas, sem falar uma sílaba de si,
Fala de qualquer outra coisa, nunca de si.
14
Allons! entre lutas e guerras!
A meta nomeada segue irrevogável.
Tiveram sucesso as lutas passadas?
O que teve sucesso? você? a tua nação? a Natureza?
Me entenda bem agora — é dado pela essência das coisas que por qualquer fruição do sucesso, pouco importa qual,
[algo vem pra fazer uma grande luta necessária.
Eu clamo o clamor da batalha, nutro a rebelião ativa,
Vindo comigo, que ele venha bem-armado,
Vindo comigo, vem com dieta parca, pobreza, inimigos raivosos, deserções.
15
Allons! a estrada está à nossa frente!
É segura — eu testei — meus próprios pés testaram bem — não se contenha!
Deixe o papel na mesa inescrito, e o livro na estante inaberto!
Deixe as ferramentas na oficina! Deixe o dinheiro ilucrado!
Deixe a escola pra lá! esqueça o grito do professor!
Deixe o pregador pregar no púlpito! Deixe o jurista altercar na corte e o juiz expor a lei.
Camerado, eu te dou minha mão!
Te dou meu amor mais precioso que dinheiro,
Te dou eu mesmo antes de pregação ou lei;
Você vai se dar pra mim? Vem viajar comigo?
Vamos grudar um no outro enquanto vivermos?