SergioRaimondi dez.18 KarinaFreitas

 

 

Sergio Raimondi (1968, Bahia Blanca, Argentina) trabalhou para o Museo del Puerto in Ingeniero White e pertenceu ao grupo de poetas mateístas, que entre 1985 e 1994 escreviam seus poemas nos muros de Bahía Blanca. Em 2007, recebeu uma bolsa da Fundação Guggenheim e nesse ano é artista residente do programa Berliner Künstlerprogramm do DAAD, em Berlim. Raimondi publicou em 2001 Poesía civil, livro único e consistentemente original dentro da poesia argentina contemporânea. Atualmente, atua como escritor e professor de literatura contemporânea na Universidad Nacional del Sur (UNS) e prepara uma vasta enciclopédia poética, na qual vem trabalhando há alguns anos. Adiante, cinco poemas seus traduzidos.

 

 

O que é o mar

o varrido de uma rede de arrasto ao largo do leito,
malhas de abertura máxima, no tanque setecentos mil
litros de gasóleo, sacos de batata e cebola na bodega,
jornada de trinta e cinco horas, sonho de quatro, café,
acordos pactuados nos escritórios de Bruxelas, crescimento
do calamar illex em relação à temperatura da água
e as assinaturas de aprovação da Corte Suprema, circuito
de canais de aço inoxidável por onde os peixes caem,
abadejo, hubbsi, transferências de licença amparadas
pela Secretaria de Agricultura, Pecuária e Pesca; ali:
o arrastão atravessa a linha imaginária do paralelo, vai
atrás de uma mancha na tela do aparelho detector,
o cardume ignora a noção de milhas e de concessões,
das estatísticas irreais do INIDEP [nota 1] ou a defasagem
entre salário e custo de vida desde o ano mil e novecentos
e noventa e dois, filés de merluza de cauda, SOMU [nota 2] e peixe-sapo,
cartas de crédito adulteradas, lâmpadas e bandeira asiática,
irrupção de surtos de aftosa em abatedouros britânicos, hoki,
regresso ao mar profundo de toneladas de pota morta
frente à aparição do langostino (cinco vezes mais caro),
infraestrutura de armazenamento e refrigeração, pesqueiro, isto.

 

A natureza não é um banco

Embora a ceifada gavela de trigo, à última luz do dia,
assemelhe seu brilho ao que tem o ouro, a Natureza
não é um banco, e a flexibilidade da vara não admite
metáfora econômica alguma, salvo quando estala.
E assim as grandes colheitas favorecidas pela chuva
não alcançaram lá por mil oitocentos e setenta amortizar
o déficit provocado pelos importantes empréstimos
assinados em Londres, que tinham permitido estender
o crédito vacante e com o que se acreditara pagar
a debulhadora a vapor. Importou-se para exportar, não
para não importar mais. Um ano ou dois sem nuvens à vista,
e a debulhadora urgente de manutenção, e o número
ingente da dívida, ossos brancos, o junco seco
do fisco junto ao arroio seco, uma cena romântica,
à sorte do destino liberal exemplar que copia e copia
como a literatura dos ociosos, muito, muito e mal.

 


Sonho e reparação

Como certos motores à gasolina, o operário
se alimenta de sopa, uma porção de batatas
cozidas, um sanduíche de milanesa e duas
frutas que podem ser laranjas ou maçãs.
Tudo isso sobre uma bandeja de isopor
envolto em nylon. Ademais um copo plástico
e uma série de jarras com suco ou água
em forma regular dispersas sobre a mesa.
Embora o menu não se repita de forma exata
dia a dia, semana a semana, mês a mês,
certas vitaminas dominam a composição.
O paladar de cada um dos comensais
se adapta a um sistema de sabores e pesos
que varia segundo o grau de importância
da empresa e a qualidade da licitação.
Aqueles que se dedicam a fornecer as rações
sem dúvida sabem que não convém gerar
sonolência (usualmente modorra ou preguiça),
embora seja possível que um sonho limitado
entre vinte e trinta minutos, a cabeça
recaída sobre o respaldar, os braços soltos
aos dois lados da cadeira, permita renovar
as forças do corpo com um bônus de eficácia.
Com uma pá nas mãos a ponto de ser
fundida ao acúmulo de terra, o operário
se assemelha de muito longe à máquina
que faz o mesmo embora com rapidez
maior e em maior quantidade. O sol, a chuva
e a ação constante também debilitam
o artefato e imprimem marcas notáveis
não somente na lataria senão no sistema
de transmissão e até mesmo no motor;
sua velhice sempre iminente, sem embargo,
mede-se menos por deficiências progressivas
do que pela aparição de um novo modelo
de funcionalidade mais ampla e custo mais baixo.

 


A dieta de Dante

A dietética deveria perguntar-se como um poeta
que baseava toda sua alimentação em ovo
(com uma pitada de sal, segundo a fábula)
produziu tal quantidade de versos em forma regular
durante tempo considerável. A estrutura
cerrada da obra sem dúvidas foi um estímulo:
não se tratava de avançar para o nada (ou sim,
mas em todo caso o nada também havia sido
previsto). Talvez teria que levar em conta
a relação entre conteúdo energético e volume
que favorece este alimento se o compararmos,
por exemplo, com a carne. Enfim, os estudiosos
deveriam entrar em questões aparentemente alheias
e dedicar-se por um tempo à análise dos versos
a fim de corroborar, como assinalou uma vez um russo,
o impulso com que ele pressupõe cada terceto
e dispara ao que se segue segundo um modelo de fases
de um foguete espacial; é somente uma sugestão
mas a célula do ovo, é mais do que sabido,
contém o germe de um novo ser e as substâncias
das quais ele poderia se nutrir. Por outro lado,
grande parcela destes seres costuma ser aves.

 

A história há de se escrever sobre uma praia pavimentada

O que deveria ser visto a partir daqui não é a estólida
definição vertical dos galpões feitos ladrilho a ladrilho
senão, ao contrário, sua dispersão horizontal
logo após o efeito de um explosivo muito eficaz
acionado em condições verossímeis de precaução.
O enorme número de metros quadrados que corresponderam
ontem ao Estado, e antes de ontem ao Cangrejal
deverá converter-se em uma ampla esplanada de cimento
e vazio: somente assim a paisagem poderá ficar disposta
e recentemente então será possível imprimir sobre seu nada
a imagem do novo projeto dos sonhos: containers
sobre containers sobre containers sobre containers.
Trata-se de oferecer a ilusão do que é possível começar
de novo, e, portanto, de adequar, como foi feito
um século atrás com este inóspito lugar a partir
das exigências da empresa de trem, um passado equivocado
a um porvir cujo esplendor já havia sido comprovado
em outras latitudes. Isto é: o futuro existe,
ainda que por agora está a 12 ou 16 horas de avião.

 

 

NOTAS 

[nota 1]. Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento Pesqueiro
[nota 2]. Sindicato dos Operários Marítimos Unidos