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Uma entrevista de Érika Martínez à revista Quimera (julho/agosto 2016), de Barcelona, é como pequena sirene a alertar que detrás de suas respostas havia a promessa de um descobrimento. Logo, o salto internético para tentarmos conhecer alguns de seus poemas, ao aguardo da sensação de que uma página aberta poderia ser janela ou traço a unir retalhos do viajar entre palavras-estradas, ou palavras-ruas de um lugar que pressentimos, mesmo não existindo. À leitura do primeiro poema, a inevitável tradução, maneira de nos agarrarmos a pedaços de textos que nos aprimoram e redimem. E depois, quem sabe, farão parte de nosso convívio. Como este Mujer mirando a hombre que limpia coche. Ou o flanelinha, tão próximo de nós que o vislumbramos como se estivéssemos reproduzindo a mesma cena na calçada de um bar de nossas praias: confronto de classes e de gêneros: energia contida e suspensa que nos ateia e, de repente, lavra o chão de nosso desatino.

Mulher olhando lavador de carro

Érika Martínez

Mulher no restaurante que não pode ousar olhar o lavador de carros. Mulher com olho direito maior, olho que divaga e espia através do cristal da taça de longa haste. Três colegas na mesa e um deles a manda provar o ponto da carne. Vagina é ponte que comunica cozinha e homem. Anda, veja você que sabe!

Homem que lava carro lava carro. É tão caro que não lhe pertence. E se acocora junto ao para-lamas com sua flanela, e se estira na ponta dos pés sobre o capô, e desaparece até a cintura enquanto sacode os assentos. Mostra posturas sucessivas e também superpostas, como uma dessas placas fotográficas de Muybridge com atletas primitivos e cavalos.

Meu avô foi cocheiro e depois dono de restaurante. E eu, o que sou? Homem que lava carro fita a mulher no restaurante que não pode ousar olhá-lo e lhe devolve o disparate. Uma energia insolente ressuscita crustáceos e moluscos sobre o prato.

Cristal não se rompe aos poucos. Em seu afora não há oco, ranhura, orifício onde fincar ferramenta final. Cristal se rompe de súbito. Ou do nada, como essa taça que alguém golpeou pensando-pensando contra o flanelinha e, minutos mais tarde, se estilhaça sobre a mesa.

 

Depois, La casa encima. Não a casa representação do alto. A que nos constrange pela sucessão do efêmero, desnudando-nos a ideia de um “fracasso coletivo” - o da utopia -, conforme sugere a autora na entrevista a Daniel López García. E a sucessão de casas sobre casas, destino a destino, desvelando, ao mesmo tempo, a ideia da autora de que não existe memória histórica, “pois, tudo está se sucedendo ao mesmo tempo dentro”, numa superposição de instantes: “Nem como fluxo, nem como descontinuidade”. A terra remexida de nosso quintal interior, para a qual não há redenção possível: apenas nos sobra a perspectiva do desastre.

A casa em cima

Érika Martínez 

Tantos séculos remexendo esta terra
pisada pelo gado
que alimentou o gado e os homens
que regaram esta terra
com o veio negro de seu sangue - o sangue muda de cor
quando deixa o corpo.
Tanto séculos alinhando ladrilhos,
aqui havia um estábulo
sobre o qual se construiu uma igreja
sobre o qual se construiu uma fábrica
sobre o qual se construiu um cemitério
sobre o qual se construiu um edifício
da administração pública.
Tantas mulheres esfregando suas lajes,
parindo em suas lajes,
escondendo a merda debaixo das lajes
pisadas por seus filhos bêbados
e seus sóbrios maridos
que trabalharam e fornicaram
para o bem de um país em que não creram.
Tantos séculos para que eu,
membro de uma geração prescindível,
perca a fé na emancipação,
olhe o teto de meu quarto
e que a casa me caia em cima.

 

Até mesmo a casa é território do explosivo, pois entre as frestas de suas portas se esgueira o conflito dessa poesia que consegue trabalhar o instantâneo brutal com delicadeza de laboratório. O rigor a serviço do poema “que te dê um pequeno empurrão, que não te confirme no lugar que ocupas; ao contrário, pois daí também vem minha indagação no conflito”, conforme ressalta Érika Martínez. El hombre del falso techo é exemplo desse exercício.

O homem do falso teto

Érika Martínez 

Um homem horizontal
habita o falso teto de minha casa.
Quando atravessa a soleira
inquire sobre mim
como um soldado no chão
e repete com sotaque estrangeiro
cada palavra que digo.
Entrincheirado nas alturas,
desgasta o gesso escuro
com seu zum-zum de térmita.
Se acomoda, ganha terreno,
consegue que seja eu.

 

Então surge a visita inusitada do escalador de fachadas e, na alvorada, através de cortinas, com sutileza de pássaro, sugere que o anjo do progresso de Walter Benjamin pode ter outra leitura. O Angelus Novus de Paul Klee: em vez de deixar seu amontoado de ruínas erguendo-se até o céu após a tempestade, esfuma-se, num rumor de cordas. Como a percorrer uma grande fuga, em discípulo de Bach.

Alvorada vertical 

Érika Martínez 

Escalador de minha fachada,

artesão do ar,
o homem que contemplo
ensaia técnicas de altura,
conhece com suas mãos a cidade.

Cada manhã pousa suas sapatilhas de ave
sobre meu parapeito,
desce sistemático, pontual
como pesos de um relógio de cuco
e afasta com sua cabeça
a paz de minhas cortinas.

Às vezes imagino que seu arnês,
ciumento de meus beijos, desfaz-lhe o abraço.
Meu amante vertical então me olha,
suspenso um instante entre as nuvens
e se esfuma
deixando-me um rumor de cordas.