As festas, as piscinas e o mundo de luxo de uma grande devota da Caras.
Que lindas as xícaras de porcelana chinesa de Dona Severina. Todas arrumadinhas na caixa, impecáveis. Diferentes dessas que a gente encontra por aí, brancas, volumosas, comuns demais. As de Dona Severina não, são especiais. Trazem o rosto de Adele Bloch-Bauer, a mulher que Gustav Klimt transformou em quadro dourado e, mais tarde, milionário — vendido a 135 milhões de dólares a Ronald S. Lauder, dono da empresa de cosméticos Estée Lauder, como a pintura mais cara do mundo.
Dona Severina, há mais de 35 anos vivendo no Alto José Bonifácio, zona norte do Recife, se encontrou com a aristocrata Adele, que morou na distante Viena no início do século passado, com um passe mágico vendido na banca de revista. Foram apresentadas pela Caras, aquela que disponibiliza, através de suas compilações de música clássica e reproduções de obra de arte, um mundo bem distinto, lustroso e arrumado, feito em “papel especial” e “finíssima porcelana”. Bach e Klimt a R$ 7,90, com direito a visita a uma estação de esqui. Mundo mais cheiroso, sem retoques, diferente do cotidiano pouco empolgante da senhora de 72 anos, que vende lotes funerários a prestação. Lugar de exceção, do onírico e da felicidade, cápsula democrática que a ajuda a sair das ladeiras e escadarias direto para a casa florida do casal que celebra 25 anos de união. Prazeroso devaneio. Mas com o que sonha Dona Severina?
Para quem a observa de maneira apressada, a resposta é fácil, soma-se dois mais dois. Com piscinas. Com castelos. Com a diversão sem fim. Cercada por caixas que guardam, afetuosamente, suas revistas adquiridas nesses brilhantes dez anos, Dona Severina se impõe e subverte a soma primária. Não quer piscinas. Nem castelos. Diverte-se há uma década, quatro vezes por mês. Na entressafra, vai nos arquivos e busca um dos mais de 500 semanários, onde encontra-se com Ana Maria, Adriane, Luciano, sua querida Sasha (“Eu gosto tanto dela. Nem sei por quê. Acho ela tão bonita”). Além do tesouro de papel, há também os CDs, as Obras de arte mais valiosas do mundo, os faqueiros só compartilhados entre Severina e os Extraordinários, o olhar de Adele impresso na porcelana — fique claro — chinesa. São tão bonitos e bem cuidados, nem parece que vêm grátis na revista.
Na época do jogo de xícaras batizadas com o atestado de bom gosto (falamos de Klimt, ora essa), as Caras eram compradas em dupla. Dona Severina sabia do valor daqueles objetos, não quis guardar a lindeza apenas para si: fez dois jogos, um oferecido como presente de casamento a uma parente.
“Ah, pois é, mas ela quebrou, colocou na cozinha, no dia-a-dia”. Faltou, como sugere essa senhora magrinha, que anda quilômetros por dia, a sensibilidade para diferir o utensílio onde despeja-se o café Royal de todas as manhãs do objeto mágico que acaricia, de vez em quando, a imaginação. E nela, perceba-se, não há espaço para Duralex.
Ninguém joga aquilo de que tanto gosta assim na pia. Entre uma prestação e outra, aprendeu: perdeu algumas das peças de um faqueiro, pensava como aquela parente. “Agora, não boto mais no uso porque dão fim”.
Na Assembléia de Deus – tem um templo bem pertinho de sua casa –, ninguém reclama, isso ficou no passado; tudo o que é religião agora tem seu canto na TV. Em casa, onde mora com filhos e netos, também não há problemas. O negócio é arrumar e ajeitar as caixas, tantas delas cercando a cama de solteiro onde Dona Severina dorme.
Dinheiro, quando falta — e falta — também não é empecilho. Em uma banca na Avenida Norte, ela compra fiado, paga quando lhe pagam, e assim vai.
Só quer descansar seu olhar em espaços mais bonitos; compartilhar, mesmo que marginalmente, da celebração. Vai folheando, comentando, passeando.
Sente-se à parte – “Isso não é para mim”; talvez em algum momento perceba a violência de uma plenitude contínua.
Ao mesmo tempo, sabe que essa felicidade sem fim é um bom artigo para fugir da experiência comum, é felicidade que se compra e que nem combina com todo mundo que está ali.
A menina do olhão, da novela das oito que se passa na Índia, é um exemplo. Nesse momento, o mundo lustroso é de Dona Severina, que atua como um árbitro, a hostess à beira da piscina. De longe, flutuando, no devaneio, ela olha a festa, sorrindo para os que pertencem ao ambiente, fazendo piada dos que entram sem sua permissão. Assim sonha Dona Severina.