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Milan Kundera comparava o trabalho do escritor ao de um construtor. Dizia que primeiro se tem que derrubar a casa da vida para, com as pedras, construir a casa do romance. Eduardo Berti gosta de citar essa definição do autor de A insustentável leveza do ser para explicar como concebe seu ofício. Para o escritor argentino, as histórias — as suas e as das pessoas próximas — são a matéria prima. Depois de colocá-las abaixo, e usando os mesmos tijolos, ele edifica sua ficção.

 

Nascido em novembro de 1964, em Buenos Aires, filho de um romeno que nunca gostou de falar de seu país — e que após escrever um livro o rasgou — e de uma locutora de rádio frustrada, Berti vai buscar na infância grande parte do combustível para suas criação — ou seguindo a metáfora de Kundera, suas pedras. “Sou filho único e minha família é pequena. Eu tinha poucos primos, e meus pais, embora fossem muito companheiros, eram bastante mais velhos. De maneira que tive que criar um mundo próprio para mim”, explica o autor de El país imaginado, vencedor do prêmio Las Américas do ano passado.
A fronteira entre o real e o imaginado sempre foi uma película fina e porosa para o literato argentino. Ainda menino inventou um país — com hino e bandeira próprios — e “antecipou” a morte de uma senhora. “Sonhei que a avó de um amigo morria, e no outro dia quando os pais do garoto aparecessem na escola mais cedo do que o habitual para busca-lo, eu já sabia qual era o motivo, antes dele mesmo. E me senti culpado, como se tivesse matado a avó dele no meu sonho”. Durante a infância, na casa das tias solteironas, ambas professoras de literatura, começou a brincar com uma Olivetti e imaginar histórias (e nunca mais parou). Algumas delas vieram a ser publicadas em 1994, no seu livro de estreia (Los pájaros). Nesses primeiros contos, uma das marcas de sua literatura já aparece com força: a irrupção do insólito (ou inesquecível, como gosta de chamar) no cotidiano.

 

“Suponho que tem a ver com meu modo de ver o mundo. Costumo estar à espreita do insólito e do inefável dentro da rotina. E imagino que tenha que ver também com minhas leituras desde jovem. Julio Cortázar, obviamente, mas também Virgilio Piñera, Silvina Ocampo, Dino Buzzati”, explica Berti, que gosta de pensar no fantástico como ferramenta para explicar o ser humano. “Como dizia Calvino, no século 20 encontramos um uso mais intelectual, menos emocional, do fantástico. Como jogo, ironia e, sobretudo, como meditação sobre os fantasmas e desejos ocultos do homem contemporâneo”, explica, e cita um relato breve de Juan José Arreola como exemplo: “A mulher que amei se converteu em fantasma. Eu sou o lugar de suas aparições”, reza o escritor mexicano. “Aqui o fantasma não é algo desconhecido, é familiar. O lugar onde aparece o fantasma não é mais no Castelo ou numa habitação de um hotel perdido, como nos escritos góticos. O lugar é o homem.”

 

O tempo de um cigarro

Em um dos bolsos Berti carrega uma livreta, um pequeno caderno onde escreve tudo, da lista do mercado às ideias para contos ou romances. Foi em uma dessas cadernetas que começou há mais de 20 anos a escrever micro relatos, “sem ter muita ideia do que estava fazendo”. À medida que escrevia esses textos curtos — muitos deles publicados em 2002, no seu livro La vida imposible — ia se interessando por outros escritores que trabalhavam com esse tipo de relato. Descobriu que o que fazia era um gênero literário, um pouco esquecido, mas muito mais antigo do que o imaginado — muito anterior a Cortázar, Borges ou Kafka, três grandes nomes que navegaram nesse rio. “Os norte-americanos chamam de ficção súbita ou flash fiction ou ainda super short stories. Os chineses falam em contos que duram um cigarro, e o prêmio Nobel Japonês Yasunari Kawabata falou em “contos da palma da mão”, explica Berti, e continua: “O crítico espanhol Fernando Valls insiste em que se deve dizer microrrelato porque não se trata unicamente de conto, senão de um gênero que tem, ao mesmo tempo, elementos de narrativa, de poesia e de ensaio. Uma espécie de gênero anfíbio”. Grosso modo, estamos falando de textos que tem menos de duas mil palavras. Um romance tem mais de 30 mil palavras e um conto, menos do que isso. No meio existe a “nouvelle” (ou romance curta). “E se um conto convencional oscila entre as duas mil e as 30 mil palavras, um conto breve costuma ter menos de duas mil. E um microconto menos de 500 palavras”, teoriza Berti. Existe ainda uma espécie de subgênero que são os contos “ultra brevíssimos” de menos de 50 palavras, onde está, por exemplo, O dinossauro, de Augusto Monteroso: “Quando despertou, o dinossauro ainda está ali”.

 

Com La vida imposible e Lo inolvidable (2010) Berti tornou-se uma das principais referências quando o assunto é conto breve e hiper breve. O gênero ganhou espaço nos últimos anos, principalmente na Argentina, México e na Espanha, com o surgimento de novos nomes e editoras dispostas a investir. O aparecimento de blogs e revistas literárias virtuais também foi fundamental para oxigenar o gênero. Além de sua produção própria, Berti é responsável por algumas antologias sobre o gênero. As pesquisas sobre literatura levaram o escritor a acrescentar em seu currículo a faceta de professor. Há anos coordena oficinais literárias, sobretudo voltadas para contos e relatos breve. “Aprendo muito. Acabo por descobrir novos autores, reler textos, refletir sobre a prática de escritura. Há coisas que não se ensina, como essa cota de talento inato imprescindível às atividades artísticas, mas há coisas que se pode proporcionar, como ferramentas, recursos técnicos e até algo como uma ginástica para manter a boa forma da criatividade”.

 

Foi em uma oficina dessas que o conheci. Já o havia visto em uma palestra e conhecia um pouco de sua obra. A primeira impressão foi confirmada no segundo encontro. Eduardo Berti é uma pessoa extremamente generosa, atenciosa e algo tímida, que cuida para não dar um tom professoral a suas intervenções. No final da aula pediu que todos os alunos lhe mandassem um relato breve. Ele devolveria o texto comentado. Foi com a mesma atenção que respondeu, prontamente, o pedido de entrevista para o Pernambuco. No final do e-mail, um “muito obrigado” perdido no texto em castelhano, dava medida de sua personalidade. Berti conhece o Brasil e muito da literatura brasileira, embora ainda não tenha nenhum livro publicado no país.

 

Não viver de memória

Antes de dedicar-se à literatura Eduardo Berti trabalhou como jornalista — ainda hoje colabora eventualmente com publicações na área cultural. No começo dos anos 1990 foi repórter do jornal Página 12, então recém-fundado. Ali conviveu com grandes mestres, como Juan Gelman, jogou “em todas as posições” na redação e se especializou em rock argentino (tem um livro escrito sobre o assunto). Em 1998, mudou-se para Paris, onde trabalhou como correspondente e tradutor, escreveu roteiros e deu sequência à sua carreira literária. Foram nove anos na capital francesa. Voltou por um curto período a Buenos Aires, onde criou uma editora, agora dirigida por um amigo, que publica obras “esquecidas” pelos grandes selos. Desde 2008 a residência, onde moram com a esposa e a filha, é Madri. Embora tanto tempo longe do país, Berti não se sente um emigrante político. Diz que saiu da Argentina por vontade própria, para mudar de ares, e que pode voltar a qualquer momento. “Gosto de viajar, de me colocar na posição de estrangeiro, de romper hábitos. Não viver de memória, como diz essa canção do Djavan”, explica.

 

A fuga da rotina também está presente em sua escrita, que longe de se ater a um só gênero, navega entre o conto, a crônica, o ensaio e o romance. Diz que não sabe muito bem como catalogar seus textos e que isso não é algo que o importe. “Quem fica apreensiva com isso são as editoras que, em grande medida, estão convencidas que romance vende mais do que os livros de contos ou híbridos. Boa parte da literatura latino-americana está feita de obras que parecem se negar a serem etiquetados. Isso, no meu entender, a faz mais vital, mais interessante”.

 

Para o autor de Água (1998), a diferença entre o conto e o romance está, mais do que na extensão, no foco dado pelo escritor. “Há pouco li uma definição de Edith Wharton que gostei. Dizia que a situação é a preocupação principal do conto, enquanto na novela ela é o personagem. Acho que se encaixa no meu caso de trabalhar. Gosto de alternar e não é raro que enquanto eu esteja em um romance eu escreva alguns contos”.
Atualmente Berti está envolvido em um projeto com o DIPC (Donostia International Physics Center), dirigido pelo físico Pedro Miguel Echenique, no País Basco. Trata-se de uma residência literária que pretende explorar as conexões entre arte, ciência e humanidades, e cujo objetivo é abordar, desde uma perspectiva multidisciplinar, as fronteiras entre literatura e ciência. “Nos últimos tempos pensadores como John Brochman popularizaram o conceito de “Terceira cultura”, em prol de uma maior comunicação e compreensão entre a cultura humanística e a científica. A ideia é encontrar espaços e conceitos comuns, como uma forma de aproximá-las para tentar compreender melhor o mundo”, explica o escritor.

 

O que sairá dessa parceria é algo que o argentino ainda não sabe muito bem. Por ora trabalha em um outro romance e num livro de contos. Continua escrevendo nos cafés, em sua pequena livreta, e caminha pelas ruas de Madri atento, à procura do insólito.