Para o missólogo maior, escrever um livro sobre o assunto seria vulgaridade

É no meio dos quadros de sua querida Marilyn Monroe que o jornalista Fernando Machado se sente em casa. Escolhe um sofá ali perto para a entrevista. No centro da sala, uma mesinha lotada de papéis, livros e revistas é um pequeno prenúncio dos outros cômodos, verdadeiros depósitos de anotações à mão, fotocópias, recortes de jornais e fotos.
Explica-se: Fernando é um missólogo, um especialista no sofisticado mundo dos concursos de misses. Antes mesmo de começar a discorrer sobre o assunto, ele prefere evidenciar os seus esforços, mostrando as pilhas de dados reunidos em um quarto de serviços.
A coleção, bastante organizada, começa em 1900 e reúne, por exemplo, a revista Cruzeiro de 1949, que relata como foi a primeira edição do Miss Brasil – antes, os equivalentes eram os concursos de moda. A curiosidade começou na juventude, na década de 1960, auge dos concursos: “Os desfiles eram um happening, tipo uma partida de futebol. Iam 28 mil pessoas para o Maracanãzinho ver a final”. Empina o nariz e se vangloria do resultado da investigação metódica: “Tenho aqui a relação de todas as misses”.
Apesar de outras finalidades já terem sido cogitadas, a função dos arquivos é basicamente pessoal: “Eu ia fazer uma obra a partir dessas anotações que eu tenho. Tinha até nome: ‘Nos tempos da passarela’”. Por que o projeto não vingou? “Hoje está todo mundo escrevendo, o livro se tornou uma coisa vulgar”, menospreza.
Durante a conversa, a boa memória vai enumerando misses. Martha Vasconcellos, Ieda Maria Vargas (“minha amiga, converso sempre com ela”), Martha Rocha (“desenvolve um trabalho lindo com sua ONG em Boston”), Sônia Maria Campos, Dione Oliveira, Maria Edilene Torreão. Para cada uma, mostra uma foto do acervo. E vez ou outra tece comentários com acidez: “Esta não era essas coisas todas”, “esta ficou horrível com o tempo”. Às mais próximas, não faz nenhuma ressalva.
O gosto pelo assunto o levou, em 1988 e 1989, a organizar o Miss Pernambuco junto com o colunista social Alex, feito que lembra com orgulho. “Elegemos a primeira miss negra do Estado, Ana Maria Guimarães”, conta Fernando. Na época, nenhum dos grandes clubes locais quis aceitá-la como sua representante. Quem acabou bancando a candidatura foi o humilde Clube Rodoviário. “Foram dois concursos lindos!”.
Depois, participou das seleções de misses apenas como jurado. No entanto, demonstra menos empolgação com os eventos de hoje em dia. “Os concursos de miss se vulgarizaram muito. Além disso, são sempre as mesmas participantes, cada dia mais feias”, desabafa. “Eu sou da época da high society”.
Inesperadamente, antes de ser jornalista, Fernando trabalhou por algum tempo como operário, no Departamento de Estradas de Rodagem. Pretendia enveredar-se pela engenharia, mas acabou se descobrindo mesmo no jornalismo, que cursou na Universidade Católica de Pernambuco. Na instituição, teve como colegas Ricardo Noblat e Orismar Rodrigues, com quem manteve certa amizade.
Em 1971, entrou no Jornal do Commercio e, com o tempo, tornou-se o braço direito de Alex, “uma enciclopédia da sociedade pernambucana”. “Saí de lá em 1996, no auge do jornal. Ninguém entendeu o porquê”, relata, antecipando qualquer pergunta: “Quer saber se eu me arrependo? Não. Eu aproveitei e fiquei até 2006 só pesquisando sobre misses”.
Só até 2006, porque foi neste ano que iniciou a sua coluna social online (fernandomachado.blog.br). Começou a pedido de um amigo. “Ele disse: ‘Fernando, você não pode ficar de fora do mundo das colunas. Você escreve muito bem’. Eu expliquei que não sei mexer em computador, mas hoje eu administro o site sozinho”, conta, com sua mescla de modéstia e exibicionismo.
O destaque do site são as diversas seções, que trazem notas comuns e novidades religiosas, consulares e militares, campos menos explorados por outros profissionais. “A parte sobre misses faz muito sucesso. Mas quando eu boto as fotos de homens sem camisa é uma coqueluche!”, revela Fernando.
Nas coberturas sociais, uma das principais reclamações do missólogo é a queda de qualidade, o que leva as pessoas a enxergarem o cronista como alguém fútil: “Alguns até são, mas não eu. Se tocar uma música erudita em uma festa, eu sei qual é”. Tirando a honrosa exceção de Danuza Leão, não esconde a preferência por colunistas homens: “Nessa área, o homem tem mais frescura que a mulher. Ele descreve todos os detalhes insignificantes”, polemiza.
O blog, assim como o acervo, é a construção de um homem só, que presencia, redige, fotografa, edita e revisa. “Enquanto eu puder fazer colunismo, eu vou fazendo. Não ganho dinheiro com isso, mas, se eu ficar em casa parado, eu entro em depressão”, confessa Fernando. Mas ocupar-se não é a única motivação. O prazer óbvio em ainda ser lido e poder tecer suas cuidadosas observações fica claro em cada pequeno enaltecimento: “As minhas amigas de mais de 50 anos aprenderam informática só para acessar o meu blog”.
Fernando parece sempre estar hesitando entre assumir definitivamente o papel de jurado crítico e discreto e o de uma glamourosa candidata a miss. De fato, ele é uma pessoa simples – um pouco, como afirma, “do tempo em que jornalista não era notícia”. Ao mesmo tempo, não esconde a satisfação em se narrar, com modéstias em suas palavras e elogios nas dos amigos. Talvez se trate apenas de um missólogo – em toda possibilidade pitoresca da especialidade – que ainda preza pela sofisticação em um mundo vulgar. Alguém que deixa escapar tal frase numa conversa, como se fosse um comentário sobre o clima: “Ontem quem me ligou foi a Miss Alagoas de 1957, só para conversar”.