Ilustração por Karina Freitas

 

Austro-Costa (1899-1953), menino pobreda cidade de Limoeiro (Agreste Setentrional de Pernambuco), e de precoce talento literário, trocou na adolescência a cidade natal pelo Recife. E tomou logo uma providência prática e estética para cuidar de sua imagem pessoal: detonou (não sem razão, achava-o horrível) o nome próprio de batismo — Austriclínio Ferreira Quirino —, mudando-o pelo pseudônimo com que passaria à história literária de Pernambuco.

 

Autodidata, logo se viu imerso na imprensa recifense, na qual faria carreira jogando em várias posições: revisor, repórter, colunista social e, — conforme o costume da época — se ocultando (e, por isso mesmo, aparecendo) sob inúmeros pseudônimos, alguns deles recorrentes e fixos segundo as circunstâncias exigissem. Hoje os pesquisadores, ao se depararem, nos velhos jornais, com “personagens” como Alcedo Tryste, Chrispim Fialho, Fra-Diávolo, João da Rua Nova, João Queremista, João-do-Moka, Silvio d’Almeida, Tybaldo d’Alcazão e Tritão, mal se dão conta, em alguns casos, de que são encarnações do mesmo autor.

 

Cantador e homem de letras

Austro-Costa era (como Gregório de Matos para o crítico Nelson Werneck Sodré) um “misto de cantador e de homem de letras”, pois, paralelamente à encarnação romântica, havia nele uma faceta de humorista e satírico, de um poeta que explorava bem o coloquial e a circunstância, como se constata na longa série de sonetosDe monóculo. Além disso, tornou-se, como escreveu num de seus mais famosos poemas — Capibaribe, meu rio —, o “irmão” do Capibaribe. Em seus versos, o Recife é “A cidade”. A intimidade autorizava-o a dizer apenas “A cidade”. O Recife de então é a sua atmosfera, o grande pano de fundo sem o qual muitas vezes empalidece a sua musa. Ela está implícita ou explicitamente referida nos próprios versos ou em títulos de poemas como estes: Coisas do burgo; Moças de São José; A dor — Sobre a cidade adormecida; e em tantos outros. Na cidade, solteiro até os 48 anos, morou nas pensões do centro e, no palco da Rua Nova, quando jovem, exibia seu dandismo e misturava-se ao footing (o passeio elegante de então).

 

Ao alcance da mão

A presença frequente nos jornais e nas revistas da época — não só periódicos do Recife, como de outras cidades de Pernambuco e do Nordeste — cria para o poeta uma fama regional e, o que é mais importante para um autor, um público; no seu caso, um público sobretudo feminino e ainda — não custa ressaltar — muito distante da liberação sexual que viria com o meado do século, nos turbulentos anos 1960. Dedicatórias, crônicas em prosa poética, poemas de circunstâncias as mais variadas (inclusive nos famosos álbuns das moças em flor) dão-nos a prova de como Austro e os poetas de sua época interagiam com os leitores. No seu caso, que apenas publicou dois livros em vida — Mulheres e rosas (1922) e Vida e sonho (1945) —, essa interação resultou numa tão fecunda quanto dispersa produção poética. Com sua constante presença em revistas e jornais, Austro estava por assim dizer “on-line” e sempre ao alcance da mão e dos olhos do seu leitor. À excentricidade e à verve humorística, unia uma sociabilidade que o tornou uma figura querida e desejada em salões, recitais e eventos do gênero.

 

O cronista revisitado

O Recife do poeta, “Embora situado na periferia do sistema econômico capitalista mundial, destacava-se nos cenários nacional e regional como centro hegemônico do então chamado Norte Agrário ou região açucareira do Norte do Brasil. (…) Culturalmente, a década 1920 (...) foi marcada por conflitos e tensões entre o velho e o novo, entre a tradição e a modernidade. As grandes tendências culturais, estéticas, políticas, científicas e filosóficas, que agitavam o mundo das artes, da cultura e das ciências nos âmbitos nacional e internacional, traduziram-se então, num surto inovador, em Regionalismo e Modernismo.” É o que observa a historiadora social Rita de Cássia Araújo, em seu texto introdutório deAustro-Costa em revista, inventário realizado pelas bibliotecárias Lúcia Gaspar e Virgínia Barbosa, da Fundação Joaquim Nabuco, sobre a presença do autor nos periódicos da época.

 

O Recife de Austro foi a cidade dos bondes, das melindrosas do footing, dos arrabaldes (palavra muito da época) distantes (Poço da Panela, Apipucos, Dois Irmãos, Várzea...), da Rua Nova ainda como principal artéria da capital. Uma cidade também de intensos confrontos políticos e de publicações como A Pilhéria,Pra Você,Revista da Cidade e Rua Nova.

 

Tanto o Recife de então se reflete na poética de Austro-Costa que ele, já em nossos tempos, também passou a ser citado no campo dos historiadores e dos estudos sociais, como aqui e ali flagramos em dissertações e teses de doutorado. Pois também é fato que o escritor, sem deixar de ser poeta, foi um privilegiado cronista do seu tempo social. Personagens, costumes, eventos, paisagens e lugares frequentam seus versos, viram matéria-prima para o riso e a ironia ou, muitas vezes, para cenário das penas de um amor conflituoso ou incompreendido. Não admira que, em certa sintonia com a juventude da época, seus poemas tenham encontrado, nessa faixa etária do seu público, uma importante caixa de ressonância.

 

Soneto e Epicuro na cabeça

Hoje é como se da obra de Austro-Costa apenas tivéssemos o que a voragem do tempo não subtraiu à memória: a ponta de um iceberg que se desfez. O que se entrevê no fio da posteridade — salvo que foi entrevisto por amigos, pesquisadores e admiradores — mostra-nos um virtuose do verso, capaz de transitar com fluência em várias formas fixas, das quais o soneto foi a sua grande paixão. Nada melhor como emblema dessa fidelidade ao soneto do que ver a fotografia em que seu cão fox terrier, justamente chamado Soneto, coroa, com sua pata dianteira, a calvície do poeta já cinquentão, dessa vez no pele de um pacato marido e dono de casa e, portanto, longe das excentricidades e dos ardores da juventude.

 

Há sonetos austro-costanos que se tornaram célebres, a exemplo de Último porto, Jardineiro louco, Salomé toda de verde, Tartufo-mor. Por outro lado, tendo aderido momentaneamente ao Modernismo à paulista, introduzido em Pernambuco por Joaquim Inojosa, também se deixou levar pelo verso livre, mas um verso livre que aqui e ali trai a cadência de redondilhas, de decassílabos e de alexandrinos.

 

Por delicadeza

Segundo costumava dizer sua viúva e minha tia, Helena Lins, muito do que se perdeu nas páginas do passado se deveu ao próprio Austro. É que, indiferente à glória póstuma e, ao mesmo tempo, devoto de Dionísio e de Epicuro, o poeta era um adepto do princípio de prazer e do curtir a vida. Prazer dionisíaco que algumas vezes fez com que torrasse todo o modesto salário de jornalista comprando um caríssimo perfume para a musa do dia. Prazer e sensualidade que aqui e ali irrompem na sua face satírica e mesmo na sua musa romântica ou de amor cortês: “As tuas formas redondas / vão pela praia a ondular. / Eu prefiro as tuas ondas / às ondas todas do mar”. Prazer do chiste, do qual não escapou a própria Academia Pernambucana de Letras, que viria a acolhê-lo em 1949. Convalescente de uma enfermidade, e tendo sido eleito pela primeira vez para tornar-se “imortal”, disparou num poema: “Quanto a mim, se não morrer, / vou entrar para a Academia / e isso é pior do que morrer!”.

 

Morrer mesmo o poeta só morreria em 1953 num dos primeiros acidentes de ônibus do Recife. O veículo perdeu o freio na Rua da União. Austro viajava em pé, pois gentilmente havia cedido seu lugar a uma dama. Distraído, lia um livro. Morreu talvez por descuido e decerto, como logo se observou, por delicadeza!, como se seguisse literalmente o famoso verso de Rimbaud (Por delicadeza, perdi minha vida). No dia seguinte, a cidade, em choque com o sequestro daquela morte estúpida, sepultou, entre lágrimas, discursos e tristes manchetes de jornal, o poeta que agora ressuscita para as novas gerações em oportuna edição da Cepe — coletânea que reúne seus dois livros publicados em vida e uma seleção dos sonetos satíricos organizada pelo crítico Fábio Andrade, que também assina expressivo estudo introdutório.