Em uma poesia chamada Trapézio, a mineira Ana Martins Marques é categórica: todos os poemas são de amor. Nós, leitores, estamos autorizados a discordar ou desconfiar, mas é inegável que, aos nossos pés, aparece constantemente uma ponte que vai do amor à linguagem e retorna da linguagem ao amor. Na poesia de Ana Martins, percorremos esse trajeto continuamente, movimentos feitos em direção ao Outro. Afinal, não é a ele que dedico meu amor? Não é a ele que se destina o que escrevo? O que intentamos, no exercício amoroso e no exercício da linguagem, senão, como disse a própria escritora, um espaço comum de compartilhamento e convivência? Ela faz questão de lembrar Paul Celan, que diz que o poema é como uma garrafa lançada ao mar, abandonada à esperança de poder um dia ser recolhida numa praia qualquer. E, afinal, não estamos todos nós abandonados à esperança de sermos recolhidos em algum momento? Em poucas palavras, a autora sintetiza: “podemos pensar que a linguagem é uma construção amorosa, que as línguas se elaboram a partir de ações comuns, compartilhadas; ou que o amor é uma construção de linguagem”.

 

O diálogo entre esses elementos atravessa, significativamente, a obra desta jovem poetisa cuja vida está entrelaçada com a literatura há anos — talvez desde o berço. À parte a formação acadêmica no curso letras que seguiu até o doutorado, o envolvimento de Ana Martins com a escrita literária vai além de uma relação profissional, e começou cedo. Na adolescência, ela descobriu obras como Bagagem e O coração disparado, da conterrânea Adélia Prado, com quem já foi comparada. “É uma alegria ver minha poesia aproximada da poesia da Adélia, não só por ser uma poetisa admirável, mas também por essa ligação afetiva que tenho com os poemas dela. Eu mesma não vejo, porém, muitas semelhanças entre os meus poemas e a sua obra — o que, obviamente, não quer dizer que não seja possível estabelecer relações a partir da leitura”. A associação mais provável entre elas diz respeito às questões cotidianas abordadas por ambas, mas que também estão presentes na obra de inúmeros outros escritores modernos e contemporâneos. Porém, na obra de Adélia notamos um amplo espaço dedicado à experiência religiosa, o que não ocorre no trabalho de Ana Martins.

 

Apesar da familiaridade com os textos poéticos e do hábito da escrita, o seu primeiro livro só ficou pronto em 2009, pela editora Scriptum. Vida submarina foi impulsionado por acontecimentos ocorridos nos anos anteriores. Em 2007, a mineira ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em uma categoria de autores estreantes. No ano seguinte, venceu o mesmo concurso, mas, desta vez, na categoria poesia. “Essas premiações foram muito importantes para mim, que estava às voltas com uma grande insegurança em relação àquilo que escrevia”, comenta. Seu trabalho, no entanto, não é fruto de uma rotina da escrita, na qual a poesia tem seu horário reservado no quadro das obrigações. A criação poética é, antes, o resultado de uma atenção sensível ao mundo. Nesse sentido, Ana Martins alterna períodos em que escreve diariamente com longos intervalos em que não escreve nada: “Vou anotando ideias, imagens, palavras; e espero”, descreve. Para ela, assim como para tantos outros, a escrita demanda recolhimento, solidão. Kafka, um dos seus ficcionistas preferidos, dissera outrora que “para escrever, nem a noite é suficientemente noturna”, imagem que ela faz questão de recuperar quando reflete sobre essa exigência de apartamento e clandestinidade.

 

Participar dos concursos, em 2007 e 2008, colaborou para que as suas poesias em repouso fizessem contato com o mundo; já o reconhecimento, a partir dos prêmios, revelou que o Outro também se movimentava em direção aos textos de Ana. O lançamento e a repercussão de seu segundo livro, Da arte das armadilhas, tiveram um papel importante na sua afirmação como escritora contemporânea. O convite da Companhia das Letras para realizá-lo chegou em 2010 e, desta vez, o resultado foi uma obra mais enxuta e bem articulada. “O título surgiu no meio do processo de elaboração do livro, a partir da conversa com um amigo antropólogo. Achei que a imagem da armadilha poderia funcionar como elemento articulador dos poemas”, explica a escritora.

 

A metáfora sugerida pelo título, aliás, também serve como ponte entre os temas citados inicialmente. Pois a linguagem sem cessar arma armadilhas. Pois o amor sem cessar arma armadilhas. “Quando escrevemos, partimos à caça de palavras, mas nos damos conta, rapidamente, de que somos nós as presas; acho que isso também acontece, frequentemente, no amor”, conclui Ana Martins. Seus versos, concisos e cortantes, estão atentos ao próprio fazer poético: a captura do rato pela ratoeira, a partilha da folha em branco entre o Eu e o Outro, o lugar a salvo da palavra que, doa a quem doer, não há.

 

A MORADA E O MAR
No seu mais recente livro, notamos que há, claramente, uma divisão em duas partes. Da metade para o fim, a costura dos textos é feita pelo já mencionado tópico das armadilhas. Os poemas que preenchem as páginas iniciais, no entanto, relacionam-se com a temática da casa, dos objetos cotidianos, e estão agrupados em torno da palavra “interiores”. Diante de nós, revela-se uma ode ao mínimo e ao prosaico, típica da nossa literatura desde o modernismo. Este ambiente perigosamente familiar é visitado e revisitado por Ana Martins, que já havia reservado uma seção para tais imagens na sua publicação de estreia. Justamente por acreditarmos estar diante do conhecido, do previsível, do amestrado, tornamos possível a surpresa provocada pelo enfrentamento do óbvio, pela atenção aos detalhes camuflados na rotina. “Quem abre a torneira/convida a entrar/o lago/ o rio/ o mar”.

 

Seja naquilo que é revelado pelos cômodos da casa, nos hábitos associados aos móveis ou na natureza dos pequenos utensílios, há poesia e subjetividade na trivialidade que nos cerca, e é preciso ter olhos de ver. Ver as evidências da morte na fruteira. Os três ramos de metal nos garfos. Os brincos esquecidos em cima da cômoda. A pimenteira que nos devolve o sol de ontem. E o relógio? O r-e-l-ó-g-i-o. O inútil marcador de tempo das urgências, mas das urgências vulgares. Pois o tempo que realmente importa, o nosso, o de dentro da gente, tem seus próprios marcadores

 

Ao extenso e salgado mundo d’água na fronteira com a areia – elemento que parece provocar verdadeiro fascínio em uma escritora não litorânea – também são dedicados muitos versos. Ela se questiona, inclusive, se perderia o mar, no caso de tê-lo por perto, como perde seus isqueiros e canetas, coisas baratas e fáceis de encontrar. Ao fazer da morada e do mar temas cativos, Ana cultiva dois territórios férteis: o do conhecido e o do desconhecido. Mas não subestima a capacidade de troca desses universos. “Gosto de pensar que essas duas categorias às vezes são embaralhadas nos poemas: os objetos domésticos são também estranhos, desobedientes; a casa se abre para o acaso, o tempo, a decomposição”.

 

Essas imagens também apontam uma oposição entre a aventura e o recolhimento, a partida e a espera. O que nos leva a uma figura mitológica bastante presente em sua obra: a dedicada Penélope. Ela, espera. Ela, recolhimento. Ela, morada. Ulisses, naturalmente, aventura, partida, mar. Na perspectiva benjaminiana, o herói pode ser tomado como uma representação do narrador que viaja e traz um repertório de experiências para transmitir aos outros. “Fala-se muito de Ulisses como protótipo do narrador, mas para mim é Penélope, destecendo de noite o que tece de dia, que pode ser tomada como figuração da escrita”, explica Ana Martins. A personagem, símbolo da espera, também lhe serve como metáfora do amor e da criação. “Acho que o que me atrai na figura de Penélope é a revelação de que a espera também é um trabalho, cotidianamente feito e desfeito. Isso tem a ver com a espera amorosa – no livro Fragmentos de um discurso amoroso, Barthes define o enamorado como aquele que espera -, mas tem também a ver com a leitura e com a escrita, com o texto como uma viagem que se faz em repouso”.

 

MÁQUINA DE VELOCIDADES
Existe uma definição bastante conhecida que diz que a poesia é uma ou duas linhas com uma imensa paisagem por trás. Aqui, a descrição cai como uma luva, pois grande parte dos textos da poetisa são adeptos da brevidade, do máximo no mínimo. Uma opção, aliás, cada vez mais recorrente, não se sabe se por termos assimilado os conselhos de precisão e concisão dos ícones da poesia ou se por influência do ritmo contemporâneo que parece ser propício ao sucesso dos haikais, já que nos habituamos a sentir e transcender em 140 caracteres.

 

“Talvez no Brasil, de fato, a defesa da concisão e do corte, a verdadeira guerra que foi travada contra a prolixidade, o derramamento, a ‘retórica de salão’, tenham tornado mais rara, embora não de todo ausente, experiências com o poema longo, discursivo ou mesmo narrativo. Na verdade, não sei se essa afirmação é verdadeira; talvez o imperativo do mínimo exista antes por parte da crítica”, avalia a escritora. Mas ela também relembra que a extensão de um poema não representa a garantia de nada. “A única coisa que se pode afirmar com certeza é que, como disse Machado de Assis comparando o conto ao romance, o poema curto leva sobre o poema longo, se ambos forem ruins, a vantagem da brevidade”.

 

Mas, sendo bons, ambos têm a capacidade de afetar a relação temporal do leitor com o mundo, alterando o tempo da nossa percepção. “O escritor português Helberto Helder afirmou que a pontuação é uma ‘máquina de velocidades’. Talvez essa seja uma boa definição para a própria literatura”, aponta. Já o anglo-americano W. H. Auden defendia que a poesia nada faz acontecer e, de certa forma, a escritora também concorda com essa ponderação: “De modo geral, acho que não procuramos a literatura para encontrar respostas ou definir caminhos, não vamos buscar nela um manual de instruções (na própria literatura, começando pelo Quixote, encontramos vários exemplos da insensatez que é levar os livros a sério), nem mesmo um conhecimento maior do mundo, mas talvez justamente a imagem da nossa incompreensão, do nosso desejo, da nossa perplexidade. Por outro lado, a poesia de certo modo age na linguagem, o que significa que ela age de alguma forma no mundo; seu modo de agir, porém, é imponderável, muitas vezes ambivalente, quase sempre imperceptível”.