Já faz quatro anos que ele morreu, mas os admiradores garantem que a voz de França ainda ecoa nas ladeiras de Olinda. Encenador, ator, capoeirista, o poeta independente e performático se eternizou no imaginário da cidade onde declamava seus textos, vendia seus livros artesanais e promovia recitais.
Apesar de extremamente reconhecido na boemia artística olindense, França não publicou nada institucionalizado em vida. A vasta obra inédita deve sair em forma de antologia poética até o final do ano e promete trazer para o mundo aquilo que, durante anos, foi privilégio de poucos.
Primogênito de uma família grande e humilde do Cabo de Santo Agostinho, Valdemilton Alfredo de França conseguiu a façanha de seguir dois caminhos opostos - o da ascensão social e o da renúncia. Foi o único de sua família que se formou e, desde cedo, já ocupava um cargo público. Depois de ultrapassar algumas barreiras, deixou as certezas que lhe davam um certo conforto - mas pouca satisfação - e decidiu seguir o caminho da arte-educação, da literatura e da poesia.
Em busca de uma vida coerente, na década de 1970, França se muda para Olinda, deixa para trás a família, o serviço público e o nome Milton. A partir de então, tornou-se querido e conhecido pela sua liberdade. Sua voz ganhou força na Cidade Alta e virou instrumento principal de sua arte de transformar poesia em performances.
Em parceria com a artista plástica Silvana Beraldo, começou a produzir cartões e agendas com seus poemas manuscritos, que levava consigo para onde fosse. Também artesanalmente “publicou” dois livros, A cor da exclusão (1998) e Cafuné (2003), que permitiam experiências para além da leitura com desenhos, colagens e cheiros.
A exemplo dos livros, o artista era uma transposição constante das convenções. Tinha como suporte principal de sua obra o seu próprio corpo. “Só escrever talvez não seja o bastante. Quanto mais o poeta se envolve, ele é tomado de indignação que carrega dentro de si. A gente se torna um intermediário entre os deuses e os homens, entre o poder e os oprimidos”, acreditava.
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Pregador da oralidade, França alegava que, primeiramente, a poesia chega através da presença da voz com uma intensidade que a palavra escrita não alcança. Por isso, criou, em 2000, um projeto de recitais poéticos itinerantes, o Eu, Poeta Errante, que ele continuou até o ano de sua morte, sete anos depois.
O projeto acontecia, sagradamente, todas as quintas-feiras, cada vez em uma casa diferente de Olinda. Os moradores tornavam-se anfitriões e recebiam, além do poeta, diversos convidados. Num ritual de ode à poesia que era aberto à meia-noite com o toque de tambores, as casas se enfeitavam com tochas, incensos e flores. Depois disso, todos eram convidados a escutar, ver, sentir e participar do recital.
“Ali era um espaço de literatura, mas também de teatro. Porque ele atuava e dirigia aquela cena. Quem não era poeta acabava por ser. Era um acontecimento não só literário. Era de encontro”, afirma Rafaela Valença, pesquisadora da obra.
Como de costume na vida independente de França, a divulgação do Eu, Poeta Errante era feita no boca a boca, num fenômeno chamado por ele próprio de “correio nagô”. Livre de intermédios publicitários, todos em Olinda conheciam e sabiam onde seria o próximo encontro. “Os recitais marcaram muito. Em Olinda você vai encontrar muita gente que sente falta das noites de poesia”, garante Mariano Pikman, amigo de França e diretor de um documentário sobre o poeta, ainda em produção.
Desde a circulação de forma independente à temática de cunho social e racial, o que marcava a obra de França era o caráter de resistência. Como negro, se fazia representante de sua cor em um exercício de reconexão com a ancestralidade e a luta pela libertação dos oprimidos.
“A gente não pode desconsiderar que vive em um país racista e machista. O verdadeiro poeta não pode negar suas origens nem deixar de acreditar que sua poesia pode, num relance, salvar um povo ou ser porta-voz de uma ideia”, afirmava.
Confira alguns poemas de França
Apesar de lançar mão do imaginário do candomblé e da umbanda, ele não tinha uma religião. O uso desses elementos era mais um ato político, explica Rafaela. “A gente costuma falar que ele era um griô, um contador de histórias. Usando os elementos do negro, ele ensinava às pessoas que tinham contato com a sua obra”, afirma. Amigos e poetas também chamavam França de Exu literário, em referência ao orixá que abre caminhos. “Muitos poetas se encontraram e se afirmaram nos recitais de França”, completa a pesquisadora.
Acima de tudo pode-se dizer da poesia de França que ela é performática - dentro e fora das páginas. Se, nas ruas, o autor encenava seus poemas ao lado do grupo de teatro que fundou em 2004, o TAO (Teatro dos Amadores de Olinda), nos livros, o que se via não era diferente. A obra inflamada ganhava, nas páginas, formas, cores, cheiros e oralidade. “É a poesia viva”, como definiu Laine Amaral, também fundadora do TAO.
Segundo Rafaela, na vida de França, a poesia exercia ainda um papel de autoconhecimento. “Quando a gente estuda os manuscritos da década de 1970, vemos que escrever era como se fosse um meio de terapia. Ele foi reconhecendo os problemas do povo e trabalhando isso internamente.”
França já havia se tornado uma figura mítica quando ficou doente. No final da vida, em 2006, o poeta lida com a chegada da morte com a mesma naturalidade que levava a vida. “A morte era um dos temas de sua poesia num trinômio vida-morte-vida”, disse Rafaela. “Ele percebia a morte como uma de suas mulheres. A sua última mulher”, explica Mariano.
Por isso mesmo, o ano que poderia ser de sofrimento e apatia se tornou de muita produção. “No seu último ano ele estava muito feliz. Reluzente”, afirmou Laine. Depois de passar quatro meses internado em consequência da leucemia, sua causa mortis, França sai com a vontade de editar um livro no padrões oficiais.
Segundo Mariano, ele comentava que seu corpo já não lhe cabia. “A espiritualidade dele era tão grande que seu corpo se tornara pequeno.” Quando morreu, em outubro de 2007, aos 52 anos, a comoção levou centenas de pessoas a recitarem poesias e tocarem berimbaus no seu enterro. E o que ficou foi uma intensa vontade por parte de amigos próximos de fazer circular aquela obra e dar continuidade ao desejo do poeta de publicar um livro formalmente. “Ele mesmo já tinha escolhido várias pessoas para fazerem parte do livro: diagramador, desenhista, editor, tudo já estava devidamente conversado”, afirma Mariano.
Encabeçado por André Telles do Rosário, Rafaela Valença, Mariano Pikman e Laine Amaral, o projeto Poeminflamado: a Voz Tridimensional do Poeta França deve ser publicado em mil exemplares patrocinados pelo Funcultura. Apesar de contar com a facilidade de serem próximos do poeta, os pesquisadores tiveram a difícil tarefa de transpor uma poesia oral. “Muita coisa teve que ser transcrita de guardanapos e de vídeos de apresentações”, explica Laine. Para suprir a incompletude das letras, os pesquisadores decidiram publicar, em paralelo, outros dois formatos: um DVD - com falas, recitais e atuações - e um site. “O texto era apenas um suporte. Mas o mais forte era a voz que ia e que vinha e estava solta no ambiente. A palavra”, explica Rafaela.
“Tantas pessoas têm tanta saudade de França que cruzam as esquinas de Olinda e esperam encontrar com ele. A gente ficou um pouco órfão. Publicar é uma forma de eternizar esse patrimônio importante da poesia brasileira, de encontrar com França e de fazer sua poesia ecoar”, afirma Laine.
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Chico Ludermir é jornalista