“De certo modo, Napoleão foi o verdadeiro criador do Louvre”, diz a cientista política e historiadora Françoise Vergès em Decolonizar o museu, seu novo livro no Brasil. A obra acaba de ser publicado pela Ubu com lançamentos este mês em eventos com a presença da autora em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e no Recife – ela estará na capital pernambucana no dia 7, integrando a programação da Bienal do Livro de Pernambuco. O Louvre, tido pela autora como modelo exemplar do museu ocidental, foi criado em sua forma conhecida pela reunião de obras de diversos países europeus, espoliados por Napoleão ao tomar os países no continente. Após serem saqueadas de instituições, obras de artistas italianos, alemães, espanhóis, holandeses foram reunidas em um lugar sob a justificativa de que isso era feito em nome do povo francês. Tudo isso era inédito até então. O caráter exemplar do Louvre em relação a esse modelo cumulativo e pretensamente universal de museu era tão forte, que a França conseguiu, após a queda de Bonaparte, convencer os demais estados europeus a não exigirem boa parte das peças de volta, “pois consideravam que, embora as pilhagens fossem incontestáveis, o resultado fora um progresso no qual não se devia tocar”.
Lembrar essa história hoje leva a questionar sobre o que é um museu. Há anos, requisições são feitas a instituições na Europa e Estados Unidos para que devolvam itens de seus acervos aos países de origem (muitos deles, ex-colônias), de onde foram espoliados ou saíram de maneira obscura. O exemplo mais recente, no caso do Brasil, é o manto tupinambá que será devolvido pelo Museu Nacional da Dinamarca ao Museu Nacional no Rio de Janeiro. O manto, feito de penas de guará, chegou ao país europeu no final do século XVII.
Em Decolonizar o museu, traduzido por Mariana Echalar, Françoise Vergès lembra que essa instituição não é a linha de frente do combate à lógica colonial que fundamenta o Ocidente, mas que demanda atenção por ser um campo de batalhas ideológicas, políticas e econômicas que fazem dela um “lugar único de encenação do poder do Estado-nação” – encenação que parte da ideia de “museu universal” ou “museu ocidental” que marca instituições como o Louvre ou o Museu Britânico, contra as quais a autora escreve. A forma acessível pela qual estabelece o debate, o diálogo com teorias e práticas do Sul Global e o relato de suas próprias experiências museológicas tornam o livro uma discussão sobre como imaginar e pôr em prática um programa ético decolonial para esse tipo de instituição.
Nascida em Paris em 1952, Vergès faz parte de uma família ligada ao Partido Comunista Francês e politicamente atuante na Reunião, ilha no Índico que é território ultramarino da França e onde a autora foi criada. Presidiu o comitê nacional francês de preservação da memória e da história da escravidão e foi consultora curatorial da Documenta11 (2002) e da Paris Triennale (2012), além de ter trabalhado com artistas na criação de documentários e escrito livros e artigos.
Ao partir, no novo livro, de uma crítica a elementos concretos (neste caso, uma instituição, o museu) para encampar a necessidade de imaginar mundos além do capitalismo neoliberal – sustentado, como a sociedade colonial, nas divisões de humanos em gêneros e raças –, Françoise Vergès retoma o método já conhecido dos leitores brasileiros que acompanham seus trabalhos já publicados no país.
O começo e o fim de Um feminismo decolonial (Ubu, 2020) é protagonizado por mulheres racializadas que trabalham na limpeza, abrindo e fechando as cidades do mundo. Coloca em contraste um feminismo de matriz liberal (por ela chamado de feminismo civilizatório), que reduz as lutas feministas à questão da representatividade em instituições e espaços, com um feminismo decolonial, atento à representatividade, mas também à distribuição de tarefas na sociedade e às formas pelas quais reproduzem as dinâmicas coloniais. A obra propõe um feminismo que seja um reservatório político de imaginação na medida em que seus “sonhos, suas esperanças, suas utopias, e mesmo os motivos de suas derrotas, permanecem espaços de onde se pode tirar um pensamento de ação”. Suas articulações dialogam, direta ou indiretamente, com as de nomes como Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez ou Gloria Anzaldúa.
Em Uma teoria feminista da violência: Por uma política antirracista da proteção (Ubu, 2021), Vergès parte das políticas estatais do cuidado e da cultura prisional ocidental para pensar, desde o feminismo decolonial, uma teoria da violência que exponha a racialização do cuidado, da proteção social e da distribuição tanto dos direitos (inclusive os de viver e morrer) quanto das ocupações e das perspectivas de futuro. Vergès aprofunda um aspecto referente ao “feminismo civilizatório”: o feminismo carcerário, que aposta no punitivismo para supostamente tolher o avanço da violência contra as mulheres, mas que termina por justificar a máquina racista que envolve o Estado e seus aparelhos repressores.
Assim como em obras anteriores, ela insiste para que as pessoas não se contentem com representatividade (mais artistas não brancos em exposições, por exemplo), pois somente isso não resolve a estrutura excludente que os fundamenta. Para a autora, é impossível decolonizar o museu nos moldes ocidentais; é preciso imaginar como seria um pós-museu. Para imaginá-lo, é preciso buscar “formas diferentes de exposição e funcionamento e ao mesmo tempo aprende com as normas de preservação que o Ocidente conseguiu desenvolver graças à sua riqueza (...) tentando situar objetos, sons, imagens e memórias no ambiente vivo, evitando transformá-los em ‘arte’ inevitavelmente destinada ao mercado”, explica a autora. Decolonizar o museu ainda traz relatos das experiências da autora (bem-sucedidas ou não) na criação de um museu na Reunião e na realização de oficinas com estudantes, artistas e professores.
Lutar pela devolução de objetos como o manto tupinambá ou o fóssil brasileiro do dinossauro Ubirajara jubatus (que estava em um museu alemão) é uma parte do movimento necessário sobre a memória colonial encarnada pelos museus. Esse esforço também envolve a criação de estruturas e dinâmicas que desordenem as lógicas do universal. Trabalho necessário, mas difícil, pois envolve “imaginar o que seria um pós-museu antirracista, antipatriarcal, anticapitalista e anti-imperialista exige imaginar transformações que não são meros ajustes, redesignações ou programas mais diversos e mais inclusivos” que envolve a criação de “utopias emancipatórias dentro da tradição daquelas que os/as dominados/as alimentaram desde sempre (e que) permite agir e tornar possível o que todos acreditam impossível”. Desde Um feminismo decolonial, os leitores de Françoise Vergès sabem que esse trabalho imaginativo é uma prática de vida.