Quando submeteu o seu romance ao Prêmio Literário José Saramago, Rafael Gallo escolheu como pseudônimo o nome de um personagem de Machado de Assis, Pestana, um homem que toca piano, mas não compõe o tipo de música que gostaria. Assim como o protagonista do conto Um homem célebre, o escritor Rafael Gallo passa a maior parte do seu tempo escrevendo aquilo que não lhe satisfaz. Das 9h até as 17h, de segunda a sexta-feira, ele é escrevente judiciário do Tribunal de Justiça de São Paulo; executa atos burocráticos através de “palavras funcionárias”, como diz João Cabral de Melo Neto em Difícil ser funcionário, poema dedicado a Carlos Drummond de Andrade. Na repartição pública onde Gallo dá expediente, tal qual nos versos do poeta pernambucano, há uma máquina de escrever ‒ ou, atualizando para os dias de hoje, um computador ‒ que nunca escreveu uma carta de amor, nem um texto de ficção. “No trabalho não dá para escrever. Tem sempre muita coisa para fazer, o telefone que toca e tudo mais. Preciso de tempo e alguma paz, não consigo [ser escritor] no tribunal”, conta.
Foi depois do expediente e nos finais de semana que Dor fantasma, romance vencedor da mais recente edição do Prêmio Saramago, foi escrito. Gallo usa uma metáfora curiosa para explicar o significado que a distinção recebida em Lisboa em novembro passado teve para a sua vida: “Sabe aquela sensação de você não ter entrado num avião que caiu? É mais ou menos isso, eu poderia ter tido um destino completamente diferente, oposto ao que estou vivendo agora, se não fosse esse prêmio”. Duas mudanças no regulamento do certame – a extensão do limite de idade dos participantes de 35 para 40 anos e o ineditismo da obra (até a sua 11a edição o concurso premiava obras publicadas) ‒ permitiram que o escritor concorresse com o seu Dor fantasma. Além de um nada desprezível valor em dinheiro, o prêmio garante a publicação da obra em todos os países de língua portuguesa ‒ neste mês de março o livro será publicado simultaneamente no Brasil (Globo Livros) e em Portugal (Porto Editora). Para o paulista de 41 anos, a honraria também representou uma boia de salvação num momento em que já lhe faltavam forças e sentido de direção para continuar. “Tenho visto amigos meus, principalmente nesses últimos anos, dizerem que vão parar, dar um tempo da literatura porque as coisas não estão dando certo para eles. E eu estava indo para esse caminho. Sinceramente, se não tivesse ganho o prêmio, não sei se teria escrito outro livro. Acho que eu ficaria muito tempo sem escrever, pelo menos. De alguma forma, algum abandono na escrita teria acontecido.”
Dor fantasma conta a história de um pianista virtuoso, egocêntrico e obsessivo que vê os seus planos de glória naufragarem ao perder uma das mãos. É o segundo romance do autor, que em 2015 publicou Rebentar, um livro sobre o luto de uma mãe que decide colocar fim à procura do filho desaparecido – a obra venceu o Prêmio São Paulo de Literatura. Antes, em 2012, Gallo conquistou o Prêmio Sesc de Literatura na categoria contos com Réveillon e outros dias, seu livro de estreia. Parecia um promissor início de carreira, mas nos últimos anos o escritor viveu uma crise que o fez pensar em abandonar a escrita. Dor fantasma foi recusado por dois editores e recebeu críticas nada animadoras de algumas pessoas a quem o autor mostrou o original. “A primeira versão desse livro eu terminei em 2019. Em 2020 e 2021 eu praticamente não escrevi nada”, conta. Sentia-se perdido, desanimado e pensava que talvez a vontade de escrever tivesse chegado ao fim. Imaginou que, assim como teve uma fase na vida em que se expressou através do desenho e outra em que a música foi a sua forma de comunicação, podia ser que o exercício da escrita tivesse encontrado o seu ponto final. Com alguma sorte e paciência encontraria outro canal para dar vazão à imaginação e à criatividade, características que considera que sempre fizeram parte da sua personalidade.
Na infância, as brincadeiras com os bonecos já continham um roteiro, os personagens tinham papéis definidos e existia uma trama. A paixão pelas histórias em quadrinhos levou-o ao desenho e a escolher cursar Design na faculdade. Mas nessa época a música já tinha tomado uma importância considerável na sua vida, a ponto de o fazer mudar de área: graduou-se em Música (com habilitação em Composição e Regência) e durante anos viveu de compor trilhas sonoras e de dar aulas de música. Aos poucos, a literatura foi ganhando mais espaço na sua vida até que, em vez de letras de música, Gallo começou a escrever pequenos contos. “Nessa época, eu tinha uma ideia, sentava e escrevia. Mas chegou um momento em que pensei: posso escrever melhor. E nisso a música me serviu, porque quando você começa a aprender um instrumento você é muito ruim naquilo, acha que nunca vai conseguir tocar. E eu encarei como se fosse o aprendizado de um instrumento, comecei a estudar muito, ler livros de gente dizendo como é o processo de escrever, e comecei a tentar adicionar camadas sobre as histórias que tinha, pensar mais sobre o que eu estava fazendo e o que queria fazer.” Praticou e leu contistas como Clarice Lispector, Machado de Assis, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, com olhos de quem quer entender o mecanismo por trás da arte. Quando finalmente ficou satisfeito com 10 contos que tinha feito, veio o momento de tentar publicá-los. “Eu não conhecia nada, não sabia nem que existiam oficinas literárias, que os escritores davam cursos. Mandei o livro para vários lugares, mas como não conhecia ninguém, entrava na página das editoras e enviava para um contato qualquer. Não recebi quase resposta nenhuma, obviamente, e as que vinham eram automáticas. Enviei o livro para muitos concursos, entre eles o Sesc. Naquela época eu começava a achar que escrever tinha sido um experimento, mas que eu nunca ia conseguir publicar nada. Até que recebo o telefonema dizendo que venci o prêmio Sesc e tudo muda.” Começava propriamente a carreira de escritor.
Embora a música já não faça mais parte da sua vida como ganha-pão, ela está presente no dia a dia do literato Rafael Gallo. Não só como pano de fundo de algumas das suas histórias ‒ como é o caso do romance vencedor do Prêmio Saramago ‒, mas na forma como a narrativa se desenvolve. “Sinto que penso em forma circular, e isso é uma coisa da música, que sempre volta para um refrão, e a melodia da abertura volta, e essa volta tem um efeito. Sinto isso no meu texto, a minha cabeça está sempre buscando esses retornos, essa coisa cíclica, e até estranho se isso demora a acontecer, como uma canção que demora para voltar para o refrão.” Além de romancistas e contistas, Gallo cita artistas de outras áreas como influências no seu trabalho. Compositores como Noel Rosa, Tom Jobim, Claude Debussy, Chico Buarque, Aldir Blanc e Fernando Brant, cineastas como Stanley Kubrick, Ingmar Bergman, Lucrecia Martel e Michael Haneke, e pintores como Di Cavalcanti, René Magritte, Remedios Varo, Van Gogh e Francisco de Goya. A solução para um “problema” que encontra ao narrar uma cena ou descrever uma imagem pode estar numa canção, numa quadro ou num filme. “Por exemplo, para escrever o final de Dor fantasma eu pensei num quadro do Goya. Como ele faz? A pintura tende à representação naturalista, ele sabe a proporção exata dos olhos, mas faz um pouco maior do que é o real, permite essa distorção para ser mais expressivo. São detalhes, mas dizem que Deus, ou o Diabo ‒ tem as duas versões da frase ‒ mora nos detalhes.”
FORA DE MODA
Convidado por uma publicação literária portuguesa a escrever uma autobiografia, Gallo deixou um aviso logo no início do texto: “Adianto: não tenho grandes eventos a narrar. Talvez a falta de histórias acontecidas comigo seja um dos fatores para que me fosse tão importante inventá-las”. Enfim, a literatura que faz não tem nada de autocentrada, testemunhal e muito menos autobiográfica. Para abordar os assuntos que quer explorar – e que quase sempre giram em torno da perda, da ausência e das relações familiares –, Gallo opta por protagonistas cuja biografia e história de vida são muito diferentes da sua. “Não é nem que eu ache a minha vida chata enquanto vida, eu gosto dela, mas é aquela coisa: em geral, o que é bom para a vida é ruim para a literatura, e vice-versa.” Essa literatura onde o “eu” não tem espaço, escrita em terceira pessoa, não estaria fora de moda? “Sempre me senti fora da moda, é quase um epíteto para mim. Tem um lado bom, você pode romantizar e dizer: ele não segue as modas. Mas tem um lado ruim; quando o Dor fantasma foi recusado por editores e algumas pessoas que lerem o original não gostaram, eu pensei: vai ver que o que estou fazendo não está só fora da moda como está anacrônico mesmo, defasado. Me sentia meio assim e tinha medo de não perceber isso”. O júri do Prêmio José Saramago, composto por alguns dos anteriores vencedores do prestigiado galardão, não encontrou defeitos no livro, destacou a maestria com que Gallo “conduz uma orquestra”, num crescente de “som e fúria”, até o final do romance.
ESCRITOR BUROCRATA
Ao optar por prestar um concurso público, Rafael Gallo buscava certa estabilidade financeira e rotina que nem a música nem a literatura poderiam lhe dar naquele momento. Tinha encontrado um ofício com o qual se sentia realizado, a escrita, procurava um trabalho para pagar as contas. “Eu sabia que teria menos tempo para escrever, mas tiraria da cabeça alguns ruídos e preocupações.” Quando sentasse em frente ao computador para construir as suas histórias não haveria nada que atrapalhasse a tarefa, pensava. E assim tem sido, por ora consegue conciliar vida de escritor e escrevente. “No começo foi muito difícil, muito drástico. De certa forma, eu costumava me destacar naquilo que fazia, como professor eu era muito bem avaliado, era homenageado, ganhei prêmios literários, mas no Tribunal de Justiça eu era o pior escrevente, um profissional muito ruim, muito medíocre.” Foi nos primeiros meses como funcionário público que Rafael Gallo começou a imaginar a história de um artista que tem a mão amputada. “Não precisa ser um grande entendido em psicologia, ou algo do tipo, para perceber essa relação com a minha vida”, diz e, em seguida, sorri o escritor que não é muito afeito a escrever sobre si.