DeniseFerreiraDaSilva MatheusMelo.sobre.foto.de.Divulgação 1 fev.23

 

Como o pensamento moderno produz sujeitos que podem ser excluídos da universalidade jurídica sem desencadear qualquer tipo de crise ética? Ou, em outras palavras, como o arsenal do conhecimento que hoje governa a configuração global institui a subjugação racial e justifica o assassinato de pessoas não brancas? O instante entre o disparo do gatilho e a queda de mais um corpo negro assombra Homo modernus: Para uma ideia global de raça, livro em que a filósofa, escritora, artista e professora interdisciplinar Denise Ferreira da Silva responde a essas e outras questões por meio de um estudo minucioso sobre o papel essencial da raça na modernidade global.

Recém-lançado no Brasil pela Editora Cobogó (coleção Encruzilhada), com tradução de Jess Oliveira e Pedro Daher, Homo modernus argumenta que a racialidade permitiu a articulação de uma ideia universal do humano, ao mesmo tempo que limitou seu alcance como categoria ética, uma vez que ela não se estende a todos os humanos.

A autora examina como o conhecimento científico produziu no século XIX a noção do racial, um gesto, segundo ela, necessário para sustentar a versão pós-iluminista do sujeito como a única coisa autodeterminada. Dessa forma, a lógica da racialidade passou a operar como uma poderosa arma de subjugação, em conjunto com as estruturas jurídico-econômicas que constituem o par Estado-Capital.

“Este livro, ao desprender-se radicalmente dos modos predominantes usados para entender a subjugação racial, fornece uma reformulação da figura que está no centro dos relatos éticos modernos: o conceito do homo modernus, isto é, a consciência global/histórica”, escreve a autora no prefácio.

Denise Ferreira da Silva nasceu no Morro do Pasmado, na Zona Sul do Rio de Janeiro. No entanto, antes mesmo de completar um ano, sua família foi alvo de um processo de remoção, sendo transferida para a Vila Aliança, na Zona Oeste do Rio. Com uma história de ocupação que lembra a da Cidade de Deus, narrada no livro e filme homônimos, o conjunto habitacional da Vila Aliança foi construído no início dos anos 1960 pelo então governador Carlos Lacerda, que produziu uma intensa política de remoção de favelas em áreas valorizadas pela especulação imobiliária. Milhares de famílias foram deslocadas de suas comunidades para conjuntos habitacionais em regiões afastadas, construídos com verbas oriundas do “Aliança para o Progresso”, um programa estadunidense criado durante a presidência (1961-1963) de John F. Kennedy para financiar ações sociais na América Latina e conter o avanço do comunismo na região.

Se, por um lado, o interesse de Ferreira da Silva em escavar as origens do pensamento moderno remete ao seu apreço pela filosofia e pelas abstrações, por outro, sua própria trajetória política, assim como a trajetória política de sua geração, informa a arquitetura conceitual do seu trabalho.

Durante a adolescência, Denise teve contato com a literatura marxista e com o método de Paulo Freire numa igreja católica que frequentava em seu bairro, graças a um padre ligado à Teologia da Libertação. Além disso, fez parte do grupo de adolescentes da associação de moradores da Vila Aliança, envolvendo-se desde cedo com os movimentos sociais. Com o passar do tempo, ela se deu conta de que frequentava a igreja mais por suas ações militantes do que pela fé, decidindo abandonar a prática religiosa. Na sequência, viveu uma breve experiência no Partido Comunista do Brasil.

No final dos anos 1970, a autora viu aumentar a incidência de mortes de jovens negros devido à entrada de armas pesadas e cocaína nos morros e periferias da cidade do Rio de Janeiro. A partir de então, a violência policial, que vitimou muitos de seus colegas de escola, encabeçaria sua lista de evidências da subjugação racial.

Denise entrou na graduação em ciências sociais no início dos anos 1980, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Durante o curso, aproximou-se do Partido dos Trabalhadores, atraída pela eleição de Benedita da Silva para vereadora, em 1982. No mestrado em sociologia, na mesma instituição, sua atenção já estava voltada para as práticas de representação simbólica como operações significativas da racialidade.

Em O negro na modernidade: Cor e exclusão simbólica na novela das oito, dissertação defendida em 1991, sob a orientação de Yvonne Maggie, ela examinou a imagem da sociedade brasileira através da forma como as poucas tramas envolvendo personagens negras foram elaboradas. Não se tratava, contudo, de sinalizar para o fato de que as novelas das oito, veiculadas pela TV Globo entre 1979 e 1988, empregavam um número insignificante de pessoas negras, a maioria em papéis secundários, mas de construir um movimento analítico cujo principal objetivo era o de demonstrar que a representação daquelas personagens, sem qualquer tipo de vida interior, expressava um “projeto nacional de modernidade”.

A autora apresentava ali uma primeira versão da tese que seria desenvolvida por ela mais tarde: a ideia de que além da lógica de exclusão, que funciona como um mecanismo de segregação, existe uma lógica de obliteração que permeia as ferramentas do conhecimento racial. Em Homo modernus, ela defende que ambas as lógicas operaram ao longo do século XX, embora a lógica de obliteração tenha recebido bem menos atenção, sobretudo porque sua função foi substituída pelo papel da criminalização. No contexto brasileiro, ela entende que tanto a tese do branqueamento quanto a tese da democracia racial presumiram a obliteração da população negra e indígena.

Simultaneamente ao mestrado, Denise fez parte de uma iniciativa de ação afirmativa para formação de pesquisadores/as negros/as no Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), sob direção de Carlos Hasenbalg (1942-2014) e financiada pela Fundação Ford. Como pesquisadora iniciante, uma de suas tarefas era estabelecer conexões entre o grupo do CEAA e o Movimento Negro.

Homo modernus: Para uma ideia global de raça é uma adaptação de sua tese de doutorado, defendida em 1999 na Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, e publicada em inglês em 2007. Atualmente, Denise é professora-titular do Instituto de Justiça Social da Universidade da Colúmbia Britânica, em Vancouver, no Canadá, e professora-adjunta da Faculdade de Arquitetura, Desenho e Arte da Universidade Monash, em Melbourne, Austrália. Em português, publicou dívida impagável (OIP e Living Commons) e lançará em junho Valor negativo, pela Companhia das Letras.

Sua obra artística inclui filmes como Serpent Rain (2016), 4 Waters/Deep Implicancy (2018) e Soot Breath/ Corpus Infinitum (2022), todos em colaboração com Arjuna Neuman. Denise também é autora de ensaios para publicações de bienais de arte como a de São Paulo, Liverpool, Veneza e Documenta, produzindo leituras a partir de uma poética feminista negra. Além disso, realizou exposições, performances e palestras em instituições como o Centro Pompidou, em Paris, a Galeria Whitechapel, em Londres, o Masp, em São Paulo, o Museu Guggenheim e o MoMA, em Nova York.

Sua visão original sobre a raça na modernidade global tem sido aclamada por grandes pensadores/ as contemporâneos/as. Não é exagero afirmar que a maneira como muitas dessas pessoas entendem a operação da raça mudou completamente depois do contato com seus trabalhos. Para Saidiya Hartman, escritora e professora da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos, autora do texto da quarta capa do livro, Homo modernus “muda radicalmente nossas formas de saber e pensar, provocando uma crise constante em nosso léxico crítico e em nossos protocolos disciplinares”. Dessa forma, segundo Hartman, o livro “exige que enxerguemos os processos históricos e sociais [...] como elementos constitutivos do pensamento e incorporados à nossa linguagem do sujeito e do humano”.

De maneira implícita ou explícita, é possível ver a trajetória de Denise Ferreira da Silva como uma resposta a sua preocupação com as dimensões éticas e jurídicas do “texto moderno”, conceito empregado por ela para capturar a economia de significação propriamente moderna dos “textos” históricos, científicos e nacionais. Seu trabalho busca oferecer ferramentas críticas que nos permitam ir além das dimensões que limitam nossa capacidade de identificar as estruturas do poder moderno, buscando emancipar o pensamento de tudo que sustenta a trajetória do sujeito da razão universal e dissolver o modo de conhecimento que fundamenta a imagem do mundo como aquilo que deve ser conquistado, dominado e subjugado.


DE ONDE VEM O RACIAL?

Numa conversa recente para a escrita deste texto, Denise me confirmou algo que já havia comentado em falas públicas: sua sensação de que Towards a global idea of race (título de Homo modernus em inglês), foi publicado num momento em que seus leitores e leitoras ainda não existiam; mas que hoje eles e elas existem e estão lendo, mesmo com a dificuldade de acompanhar a densidade do enfrentamento teórico empregado por ela contra o pensamento moderno.

A autora optou por essa árdua tarefa — debruçando-se sobre diversos enunciados filosóficos, científicos e nacionais para identificar as estratégias de significação que produziram o “Homem” e seus “outros” — por entender que a crítica que se fazia ao pensamento moderno apresentava uma perspectiva limitada, justamente porque ignorava o papel do racial na produção do humano. Nenhuma corrente teórica, segundo ela escreve, encarava a tarefa de considerar como as duas narrativas produtivas da representação moderna, a saber, a história e a ciência, atuaram juntas para estabelecer o lugar do sujeito na ordem global. Nem mesmo as teorias críticas da raça efetuavam uma crítica completa, uma vez que se detinham no diagnóstico da desvalorização.

Em linhas gerais, essas análises apresentavam a subjugação racial como um efeito de crenças ou ideologias, ou seja, um desvio dos princípios morais que deveriam governar a existência moderna. Na melhor das hipóteses, tratavam a subjugação racial como constitutiva do pensamento moderno, mas não sem passar, logo em seguida, para um argumento baseado na ideia de incompletude, fiéis às promessas da historicidade. Assim, em ambos os casos, a universalidade era mantida como uma descrição apropriada do programa ético moderno.

A tarefa a que se propõe Homo modernus é, por um lado, demonstrar como os relatos dos subalternos raciais usam elementos autorizados pelo pensamento moderno, e, por outro, mapear a “analítica da racialidade”, o regime simbólico e produtivo que institui a diferença humana como efeito do jogo da razão universal.

Para Ferreira da Silva, não conseguimos entender como o racial governa a configuração global porque o principal relato sobre a subjugação, a lógica da exclusão sócio-histórica, (re)produz os poderes do sujeito ao reescrever a diferença racial como significante da diferença cultural. Apesar de moralmente abominado e abolido do dicionário político após a Segunda Guerra Mundial, o racial não deixou de constituir sua estratégia prolífica de poder, refigurando a violência que sustenta a expropriação da capacidade produtiva de terras e corpos. Portanto, de nada adiantaria apagar a raça do léxico político sem explorar como ela foi capaz de constituir a gramática moderna.

Apesar das boas intenções daqueles/as que acreditaram nas promessas de uma configuração social na qual a racialidade não iria mais operar, essa esperança impediu a compreensão das condições de produção dos sujeitos globais, sobretudo porque o relato da subjugação que informou boa parte dessas promessas supunha que a diferença racial, e as estratégias de exclusão que ela acarreta, seriam resquícios de um período pré-moderno. Logo, se as pessoas fossem educadas nos princípios da liberdade e igualdade, a discriminação desapareceria e a universalidade, tanto no nível das ideias quanto no do funcionamento social, seria plena.

Consequentemente, ao articular um projeto emancipatório, o subalterno precisa se inscrever como sujeito histórico, buscando converter-se no que a autora conceitua como “Eu transparente”, a figura consolidada no pensamento da Europa pós-iluminista: o sujeito que enxerga a si mesmo ao olhar para o mundo, atribuindo falta de relevância ontoepistemológica ao que falha em significar autodeterminação, ou seja, às coisas exteriores. Dessa forma, as estratégias críticas dominantes seguem produzindo os subalternos como amostras incompletas do indivíduo (o ser histórico-liberal), atribuindo-lhes, nos termos da autora, “um tipo de transparência autoderrotada”.

Ferreira da Silva examina, na contramão, como o racial, combinado com outras categorias sociais como gênero, classe, sexualidade, cultura etc., produz sujeitos fundamentalmente modernos. Em sua tese original, ela inicia a análise da representação moderna a partir do estudo da obra de Hegel (1770-1831). No entanto, motivada pelos comentários de uma das participantes de sua banca de doutoramento, entendeu que precisaria recuar um pouco mais no tempo para identificar as articulações fundacionais do pensamento moderno.

Homo modernus segue uma organização dividida em três partes, começando com a seção sobre o homo historicus. Nela, uma escavação de tratados filosóficos dos séculos XVII e XVIII identifica as formulações que reproduzem o esquema cartesiano da autodeterminação. Através da separação entre o corpo e a mente, Descartes (1596-1650) buscou resolver a ameaça de determinação externa, teorizando a mente como manifestação do governante divino. A mente humana foi vista por ele como capaz de determinar a verdade tanto sobre o corpo quanto sobre qualquer coisa que compartilhe seus atributos formais, como solidez, extensão e peso. Tal premissa foi posteriormente confirmada pelo sistema filosófico de Kant (1724-1804), especialmente a ideia de que o conhecimento é responsável por identificar as forças ou leis que determinam o que ocorre nas coisas e nos fenômenos observados.

O grande desafio de Ferreira da Silva foi entender como a afirmação de que a mente humana é capaz de conhecer as propriedades dos corpos, por meio de causas eficientes e demonstrações matemáticas, foi capaz de desvencilhar-se da mediação de Deus. Embora os textos analisados tentassem a todo custo assegurar a interioridade da autoconsciência, adiando qualquer ameaça de determinação externa, ela considera que a intervenção hegeliana foi a que de fato conseguiu consolidar a representação moderna.

No sistema filosófico de Hegel, a exterioridade é um momento na trajetória histórica da coisa autoproducente; trajetória essa que termina com sua emergência como consciência transparente e independente, isto é, como autoconsciência, por meio do engolfamento da exterioridade. Com essa manobra, o filósofo introduziu uma versão temporal da diferença cultural, definindo as configurações sociais da Europa pós-iluminista como o ápice do desenvolvimento da razão enquanto liberdade.

“Nas formulações de Hegel, a modernidade não é apenas o palco mais avançado da trajetória humana. Esta é a culminação de uma trajetória temporal, o momento no qual a consciência humana percebe sua intimidade com a razão (ativa, autoprodutiva e autodeterminada) transcendental — isto é, o momento em que a consciência individual e as condições (jurídicas, morais e econômicas) sociais revelam-se como atualizações da transcendentalidade. Esse é o lugar da transparência, onde o sujeito transcendental toma consciência de si mesmo como coisa do mundo (interior e exterior) e as coisas do mundo (interiores e estendidas) são reconhecidas como o sujeito transcendental.”

Apesar de reconhecer a grande influência dos enunciados filosóficos que deixaram os não europeus de fora da trajetória da razão universal, Ferreira da Silva não crê que eles tenham sido suficientes para instituir a racialidade. Ainda assim, ela considera que a solução proposta por Hegel ofereceu o ponto de partida para as reescritas científicas do homo historicus.

A segunda parte do livro, homo scientificus, faz uma escavação das ciências da vida do século XIX, projeto de conhecimento que, segundo a autora, tornou-se o elemento central da produção da racialidade, ao mobilizar ferramentas científicas para descobrir “a verdade do homem”. Sua análise entende que o arsenal científico da racialidade precisou instaurar um outro contexto ontológico, a globalidade, no qual a particularidade das configurações encontradas na Europa pós-iluminista somente pôde ser sustentada se comparada com outras regiões do mundo, num exercício de hierarquização.

Seguindo as elaborações científicas, ela encontrou dois tipos de sujeitos produzidos por meio das conexões entre configurações corporais e mentais: o sujeito da transparência, para quem a razão universal é uma guia interior; e o sujeito da afetabilidade, para quem a razão universal permanece como força exterior que o governa. Dessa forma, a autora destrincha a construção científica que produziu a trajetória dos “outros da Europa” como um movimento em direção à obliteração.

“Com a scientia racialis, o racial — e não a raça, que, como Foucault nos lembra, assim como a nação e a classe, precede suas representações articuladas no século XIX — passaria a reger ou guiar as noções que organizam a tabela dos seres humanos. Nessa ordenação cada forma corporal corresponde a um tipo de mente (funções mentais) particular, e à região global ou continente do qual aquela se originaria.”

Se o contexto de produção do homo historicus privilegia a interioridade e a temporalidade/historicidade, e o contexto do homo scientificus, a exterioridade e a globalidade, o contexto de produção do homo modernus estabelece uma articulação entre ambos, constituindo dessa maneira o ser-histórico-global. Assim, na última parte do livro, a autora analisa os efeitos de significação da racialidade, descrevendo como esta produz sujeitos modernos. Para realizar essa empreitada, ela analisa estratégias que buscam produzir os Estados Unidos e o Brasil como nações modernas.

Sua leitura de textos sobre ambas as nações, escritos entre 1890 e 1930, indicam que o espaço do sujeito nacional precisou ser estabelecido pela racialidade, buscando garantir que seus habitantes não brancos e não europeus não determinem a posição dos respectivos países no contexto global. À vista disso, ela demonstra como o subalterno racial foi posicionado no espaço habitado pelo sujeito nacional legítimo; no caso brasileiro, o sujeito transparente (levemente) bronzeado. “Em cada uma dessas duas entidades políticas, as ferramentas da analítica da racialidade instituem tanto o sujeito nacional quanto seus ‘outros’ subalternos ao resolverem a distância geográfica — a ponte entre os continentes americano e europeu — quando escrevem o corpo branco como significante de uma consciência transparente.”

 

DeniseFerreiraDaSilva MatheusMelo.sobre.foto.de.Divulgação 2 fev.23

 

O FANTASMA DO SUJEITO

Durante os anos 1980, quando ainda era estudante de sociologia, Denise lia na faculdade textos que anunciavam a “morte do sujeito”, decorrente da crise das metanarrativas da cultura ocidental e do proclamado fim da modernidade. A ciência entrava em crise. A história começava a ser perturbada pelos subalternos.

Para a autora, não é de se surpreender que analistas sociais tenham descrito a situação como o início de uma nova dimensão política: a luta pela representação; ou, em outros termos, a batalha pelo reconhecimento da diferença cultural. “O problema”, segundo ela, “é que essa emancipação epistemológica parecia dessincronizada com a herança ontológica deixada pelo conceito [de cultura]”.

Na sua concepção, a fala desse outro cultural “nunca poderia ser uma ‘voz’ inteiramente histórica”, pois o que se entende como diferença cultural é produto das mesmas ferramentas científicas da razão moderna (ou seja, o subalterno não pode falar). O que os críticos pós-modernos e os teóricos da raça ignoravam é que suplantar a raça com a cultura não seria capaz de ajudar os projetos de justiça social, uma vez que os outros da Europa sempre-já são efeitos da racialidade.

Denise lembra que ao ensinar sobre a morte do sujeito, na primeira década deste século, estudantes de suas turmas de graduação não entendiam quem havia morrido. “Quem morreu?”, perguntavam, demandando maiores explicações. Após sua surpresa com os questionamentos, ela buscava explicar por que a significância política da morte do sujeito advinha exatamente da irrelevância ontoepistemológica de sua morte: “o sujeito pode estar morto, eu explico, mas seu fantasma — as ferramentas e matérias-primas usadas para montá-lo — permanece conosco”.

Ao identificar as estratégias modernas de poder e demonstrar por que a morte do sujeito, embora tantas vezes anunciada, não significou sua aniquilação, Homo modernus elabora um tipo de explicação da paisagem política contemporânea que evita a repetição dos efeitos excludentes das grandes narrativas modernas da ciência e da história, buscando não se fixar nas mesmas categorias que constroem e reproduzem os eventos da violência racial. Isto porque, segundo escreve a autora, “os ‘outros da Europa’ abraçaram uma estratégia emancipatória fadada ao fracasso, a saber, o projeto de produzir e interpretar artefatos que apresentam sua trajetória sócio-histórica particular como a de viajantes subalternos a caminho da transparência”.

Em falas públicas recentes, Denise Ferreira da Silva tem apontado sua preocupação com a demolição de estruturas democráticas que, apesar de bastante limitadas, fornecem ao menos uma âncora para reivindicações de justiça social e, algumas vezes, impedem a violência total. Entretanto, como me contou recentemente, ela considera que é preciso abraçar a complexidade, indo além dos projetos de inclusão e dos diagnósticos de falhas de aplicação da universalidade. Sua análise nos convida a virar a tese da transparência de cabeça para baixo, destronando o sujeito da razão universal. Só assim, afinal, será possível elaborarmos coletivamente projetos críticos de emancipação e justiça global, algo que requer nada mais nada menos do que o fim do mundo no qual a violência racial faz sentido.