Há alguns anos os leitores de Flora Süssekind aguardam um livro novo da autora, que marcou os estudos literários no Brasil com ensaios de influência decisiva, a exemplo de Tal Brasil, qual romance? (1984), Cinematógrafo de letras (1987) e O Brasil não é longe daqui (1990). Garota prodígio nos cursos de Letras da PUC-Rio, leitora e ensaísta altamente profícua, Flora renovou a nossa maneira de estudar literatura brasileira nas universidades. Com um estilo singular, de alta voltagem crítica, aliando diferentes técnicas de leitura do texto literário (foi aluna de Silviano Santiago, Luiz Costa Lima e Hans Ulrich Gumbrecht) e transitando livremente entre a imprensa e a academia, a crítica logo circunscreveu seu objeto ao campo da literatura e da cultura no Brasil, sempre com um olho no passado e o outro no agora.
De modo que o lançamento de Coros, contrários, massa (Selo Pernambuco/ Cepe Editora 2022), um acontecimento de quase 700 páginas, recobre o longo período de uma espécie de resguardo da autora – entre algum silêncio, a publicação de textos pontuais, a prática docente e, como se fosse pouco, a organização de edições discretas, mas não menos importantes, na Casa de Rui Barbosa (RJ), onde atuou como pesquisadora. Pela grandeza do novo título, tanto no tamanho quanto no alcance da reflexão e nas variadas questões que levanta, trata-se, sem dúvida, de um dos principais lançamentos de 2022.
O livro não apenas reúne parte de sua produção dos últimos anos, que aborda objetos culturais brasileiros que vão do modernismo aos nossos dias, como também apresenta dois ensaios totalmente inéditos – e de grande fôlego – sobre literatura e arte contemporânea. As vozes desse grande coro regido por Flora passam então por clássicos brasileiros, que ganham leituras originais, como Drummond, João Cabral, Paulo Leminski e Clarice Lispector, até autores de destaque na cena mais recente, como Nuno Ramos, Veronica Stigger, Carlito Azevedo e Grace Passô, entre outros.
No geral, é notável nas páginas de Coros, contrários, massa um empenhado esforço crítico para compreender o tempo atual, sobretudo a virada hiper-conservadora da sociedade brasileira da última década – afinal, como já disse Süssekind em outras ocasiões, o crítico é aquele que procura dialogar com o seu tempo, seja tratando de novos objetos ou de obras do passado. Se para ela, portanto, a volta ao passado tem a ver sempre com um desconforto em relação ao nosso tempo histórico, dinâmica flagrante em vários dos seus livros, com este não ocorre diferente. Aliás, pelo contrário, nas linhas e entrelinhas de diversos textos, talvez o desconforto histórico esteja aqui ainda mais sublinhado, além de apresentar desafios críticos totalmente novos.
O desconforto se acentua, por exemplo, já na parte final do livro, no ensaio em que analisa certas “epifanias negativas”, a partir de intervenções recentes de Augusto de Campos, Cildo Meireles e Bia Lessa, como recurso estético contemporâneo que se contrapõe à “mística verde-amarela”, ou seja, a todo projeto cultural totalizante e de feitio autoritário em voga. Ou nas figurações do parasitismo, “exemplar para a trama brasileira do começo dos anos 2020”, que emergem como formas complexas (e contraditórias, com diferentes resultados) de lidar com a violência real e simbólica que irrompe com toda força no país a partir do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Nesse caso, a autora mobiliza uma série de experiências performáticas recentes de Nuno Ramos, Grace Passô, Leonora de Barros e Giselle Beiguelman. Ou ainda nos “métodos de confrontação”, embora distintos, que Veronica Stigger, André Sant’Anna e Vilma Arêas desenvolvem em suas ficções. São reflexões que apresentam ideias decisivas para compreender a arte e a literatura recentíssima no Brasil.
DESFAZENDO CONSENSOS
No caso de ensaios já publicados em anos anteriores em outros veículos, alguns inclusive neste Pernambuco, quase todos foram revistos e ampliados para o livro. E em conjunto – ou seja, em coro – ganham visivelmente força renovada. Feitas as contas, o volume conta com mais de 20 textos, e se conjuga livremente em torno dos três temas do título, sobretudo o primeiro: o coro. Trata-se de um conceito-chave, segundo a hipótese da autora, não apenas para compreender certas experiências da nossa cultura nos dias atuais, mas também para ler com novo olhar a relação da literatura moderna brasileira com outras técnicas e linguagens expressivas, como o rádio, a canção, os quadrinhos e o próprio teatro – Flora Süssekind também leciona no curso de Estética e Teoria do Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
A própria crítica alerta, em nota introdutória, que seu interesse pelo coro partiu da observação de coralidades na “conjuntura brasileira atual”, que registram “uma politização mais enfática nas formas de intervenção cultural frente à expansiva investida conservadora que se vive no país durante a última década”. O caso dos slams, lembrado pela autora logo na introdução, seria exemplar dessa forma coral de intervenção, ligada à voz e realizada como corpo coletivo, entre outros corpos e vozes, embora a crítica não chegue a dedicar um ensaio inteiro ao assunto. Mas dedica ao coro, que vai interessar mais por seu “tensionamento continuado de forças contrárias” – ou seja, em sua dinâmica conflituosa, como nos próprios slams – do que como forma homogênea ou harmônica de canto. Essa tensão é de grande importância para compreender o raciocínio geral da autora e se materializa, desde o título, na noção dos “contrários”. Pode-se dizer que o coro, para Süssekind, é sempre dos contrários.
Em outras palavras, ao se interessar especialmente pelas formas de atrito na arte, de uma “disjunção quase audível”, de uma tensão prolongada cuja “força desarmônica se mantém ativa”, como diz, a autora também não se abstém de privilegiar certos objetos, necessariamente críticos, em detrimento do que ela chama de “disposição regressiva” de algumas formas literárias atuais. Disposição regressiva que pode ser notada, por exemplo, no “esforço de recomposição do domínio das belas letras”, no “retorno facilitador a modos oitocentistas de composição, fabulação e tipificação”, assim como “no elogio ao domínio técnico de formas fixas” e ao “impressionismo personalista (...) de fácil reativação”, aspectos flagrantes, conforme analisa, em várias experiências de arte recentes.
Nesse sentido, aliás, o título do livro também parece ecoar a célebre expressão de Torquato Neto em Let’s play that, canção gravada por Jards Macalé em 1972: “vai, bicho, desafinar o coro dos contentes”. Mas ecoa de um jeito próprio, meio ruidoso, ou mesmo desafinado, como se a sentença original tivesse se quebrado, perdido sua feição de “palavra de ordem” e fosse agora recombinada em forma de palavras soltas, estilhaços, ruídos. Quer dizer, se a autora se interessa pelo canto coral, de acordo com a premissa de Torquato, é também para desafiná-lo. De certo modo a expressão de Torquato poderia funcionar como síntese da própria postura crítica da autora, que não se exime de tomar posição, ou seja, que encara a experiência crítica como maneira não só de esclarecer procedimentos artísticos, iluminar cenas históricas e confrontar objetos distintos, mas sobretudo como modelo de intervenção, com estilo incisivo e resoluto, nada apaziguador, no debate contemporâneo – ou seja, como modo de desfazer consensos.
VIVA A VAIA!
No entanto, diferentemente talvez do que se possa imaginar, o livro não trata somente de formas – literárias ou não – ligadas ao canto, embora seja um ensaio sobre a experiência tropicalista que acaba dando título ao livro. Nele, Süssekind analisa suas cisões, seus descompassos, mostrando como a estética da Tropicália trabalha com “uma multiplicidade descontínua de dicções, materiais, imagens que se desdobram, que se contrariam mutuamente e potencializam a tensão”, tendo como operador coral o “simultaneísmo” das vozes. Ao contrário, portanto, do canto a uma só voz ou da homogeneidade coral, conforme a autora identifica na apresentação de Geraldo Vandré (de Pra não dizer que não falei das flores), durante um festival da canção em 1968, entre outras expressões da época.
Por outro lado, Süssekind lança mão de uma série de questões não estritamente ligadas aos coros, a exemplo do originalíssimo ensaio sobre “fonografias modernas”, em que analisa a influência de tecnologias acústicas na cultura literária moderna brasileira, como na poesia de João Cabral e na dramaturgia de Nelson Rodrigues, cuja voz – diz Flora sobre o dramaturgo – foi treinada em transmissões radiofônicas. Já no ensaio sobre Drummond, a autora revisita uma questão não ignorada pela crítica do poeta – a tensão entre o épico e o circunstancial –, mas vista aqui em novos ângulos e com novas consequências interpretativas, em seu descompasso interno.
De fato, conforme o título do livro, o tema do coro (dos contrários) se desdobra ainda em um terceiro: a massa. Que pode ser concebida tanto na contaminação da linguagem literária por variados gêneros massivos – nos quais entraria não apenas o rádio e a canção popular, mas também o cinema e os quadrinhos, como no ensaio sobre o poeta Sebastião Uchoa Leite – quanto também na vocação coletiva da experiência coral. Vocação muito presente nas performances de grandes proporções de um artista como Nuno Ramos, mas também na insubmissão necessariamente coletiva, envolvendo inclusive o próprio coro teatral, de uma heroína como Antígona.
Como se pode ver, são muitos os assuntos, os objetos, as consequências críticas e, sobretudo, são inúmeras as vozes (de vários tons, timbres, alturas) deste livro novo de Flora Süssekind, que tem também algo de trágico, não só por sua falta de submissão aos modelos dados, mas também por sua radicalidade, flagrante na tentativa de levar às últimas consequências uma experiência de leitura. Assim como tem algo de artístico, pois o próprio livro se apresenta, em sua multiplicidade, como um coro. E no entanto, muito ironicamente, o livro se apresenta com uma ambiguidade, uma autoironia, quando a autora diz logo de início: “Este é e não é o livro sobre o coro a que venho me dedicando há bem mais de uma década”. Seja como for, enquanto o outro livro não vem, teremos muito o que pensar.