Quando recebi a pauta, achei que seria mais fácil que tocar Asa branca em flauta doce. Fazer o perfil psicológico e sentimental dos “Irmãos Evento”, figuras que se tornaram famosas em todos os principais eventos sociais do Recife, a partir do final da década de 1970.
Os dois judeus, Joel e Abrahão Datz, ficaram tão famosos, eram tão ativos, abnegados e devotos na missão de comparecer a eventos, que se transformaram em uma espécie de ISO-9000 de festas, exposições, lançamento de livros e tertúlias mais movimentadas. “Até os Irmãos Evento estavam lá!”, era a garantia de que realmente a coisa tinha dado certo.
O problema é que não sou muito de festas, e desde a morte de um deles, em 1995, o outro perdeu naturalmente a vitalidade orgânica de quem tem um irmão envolvido na mesma aventura. Fui a dois lançamentos e uma exposição, e nada. No Jornalismo, dizemos que
a pauta “furou”.
Fui salvo por um telefonema, no final de uma tarde de novembro.
“O Irmão Evento está aqui na Sinagoga!”.
Era muita sorte. Um evento em uma Sinagoga, para quem tentava escrever o perfil de um judeu.
Cheguei à Sinagoga Kahal Zur Israel, na Rua do Bom Jesus, Bairro do Recife, à procura do meu personagem. Das últimas vezes que o tinha visto, estava sempre só, tinha engordado bastante, caminhava para algum lugar improvável, e me parecia triste ou cansado.
Ele estava na abertura da exposição Quadros distantes de uma identidade, recuperação de um acervo referente à imigração judaica em Pernambuco. Era bem provável que, ao final, houvesse aquele momento mágico que os Irmãos Eventos ficavam saltitantes – o ataque efusivo e nada discreto aos salgadinhos.
Na sala pequena, onde acontecia a exposição, estavam umas 30 pessoas. De longe, por um vidro, vi Joel ou Abrahão, nunca consegui distinguir quem era quem. Como a maior parte da minha geração, jurava que eram gêmeos.
Vestia uma camisa polo azul, com aquele risquinho pra cima da Nike, calça marrom, sapato social e a indefectível sacolinha da Livraria Cultura. O efeito de ser apenas um remanescente da marca “Irmãos Evento” resultou em uma barriga de bebedor de chope. Está calvo na parte de cima da cabeça e tem aqueles cabelos branco-amarelados, que descem até a nuca, lembrando um pouco aqueles hippies sem pátria, que seguem pela tangente.
Então me aproximei da minha pauta. Só não sabia por onde começar, porque os Irmãos Evento nunca foram muito chegados a jornalistas. Se dissesse “olha, preciso de uma entrevista para um perfil”, a conversa acabaria no primeiro salgadinho.
O gelo só quebrou quando o garçom se aproximou, com os quitutes judaicos. Joel (ou Abraão) conversava com um homem, que pegou a carteira e disse que iria lhe dar um cartão.
“Olha, vou pegar um quitute para você”, disse Joel, estendendo as duas mãos como guindastes, por cima dos ombros de alguém.
Peguei um para mim e perguntei o nome da comida.
“É um Fruden”, respondeu Joel (ou Abraão), extremamente gentil, como se me conhecesse de
algum lugar.
“É um doce que é servido em todas as principais cerimônias. Em todo casamento tem”.
O amigo dele começou a circular pela exposição, e Joel emendou a conversa. Me mostrou um documento oficial do casamento judaico, uma espécie de contrato.
Enquanto falava, mandava ver nos salgadinhos. Lá pelas tantas, perguntei pelo falecido irmão.
“Ele morreu em 1995. Saímos de um evento ali perto da Praça de Casa Forte, ele se sentiu mal, caiu na praça mesmo. Foi coração. Tinha 52 anos”.
Para Bione, fundador do clássico Papa-figo, em 1984, a morte de Abraão jogou de vez por terra a tese de que “caminhar faz bem para a saúde”.
“Eles só andavam a pé. Saíam do Bairro do Recife, iam ao Centro de Convenções, viviam caminhando, e o cara morreu de infarto!”
Depois de alguns quitutes, eu precisava ir ao ponto essencial de qualquer reportagem, perfil, crônica – o óbvio.
Perguntei a quantos eventos eles iam por dia.
“Na época áurea, a gente chegava a ir a oito eventos por dia”.
“Eu sempre consultava eles. Os caras eram duas agendas ambulantes”, lembra Bione.
Joel mastigou um bolinho que esqueci de anotar o nome e completou:
“A gente ia a pé mesmo. Andávamos a cidade inteira. Uma vez perdida, a gente pegava um ônibus. As pessoas paravam, ofereciam carona, mas a gente preferia seguir a pé mesmo”.
A tática para mapear os eventos era simples. Olhavam os jornais, tomavam notas, e se organizavam, para fazer o circuito estabelecido no dia. Quando insistiam muito num convite, eles acabavam dando uma passadinha. Já nesse primeiro encontro, resolvi um problema existencial que me persegue desde o final dos anos 1980, quando cheguei ao Recife. Eu tinha certeza que eles eram gêmeos.
Abrahão, o que morreu, tinha cinco anos a mais que Joel. Eram apenas irmãos idênticos.
“O que morreu era o mais alto”, é tudo o que me informaram minhas fontes, antes de começar minha procura pelo irmão que está vivo.
FAMA E PATROCÍNIO
Tarcísio Pereira, ex-dono da lendária Livro 7, lembra que o batismo oficial da dupla aconteceu num dos carnavais do Nóis Sofre Mas Nóis Goza, na rua Sete de Setembro.
“Mandei fazer uma faixa grande, escrito “Irmãos Evento”, botei eles em cima do caminhão e coloquei a faixa. Então colou”.
A dupla ganhou tanta fama na cidade que uma loja grande do Recife, de malhas, ofereceu um inusitado patrocínio.
“Eles só tinham que ir aos eventos usando a camisa fornecida pela malharia. Do lado esquerdo, tinha o anúncio. Era uma camisa azul escura, Polo. Dizem que eles recebiam uma ajuda para se locomover”.
Como eram frequentadores habituais de sua livraria, Tarcisio fez amizade com a dupla, chegou a cogitar um anúncio da Livro 7, no mesmo molde, mas desistiu. Meses depois, não se sabe exatamente o motivo, a empresa desistiu do negócio e encerrou o contrato, que era de boca mesmo. Durante um tempo, os Irmãos Evento usaram a camisa ao avesso.
Perguntei a Joel sobre o patrocínio da Casa das Rendas. Ele acrescentou que foram garotos-propaganda de outras empresas, como a cervejaria Brahma.
“A gente tinha só que usar a camisa”, disse, com um bom sorriso e o olhar de lince a qualquer movimento em falso dos garçons.
Saímos da sala pequena, fomos para um espaço mais amplo. Joel contou então a gênese da marca “Irmãos Evento”.
“Meu irmão tocava violino, eu acordeom. A gente tocava, depois as pessoas chamavam a gente para ir a outros eventos, começamos a ir”.
Eles pegaram gosto pela brincadeira. Ao que tudo indica, a brincadeira também pegou gosto por eles. Como iam sempre, se tornaram parte da paisagem cultural de um Recife instigado e vigoroso, no período pós-ditadura.
“Com o tempo, passaram a convidar a gente para tudo, até para casamento. A gente dizia: Mas não temos paletó! As pessoas respondiam: Ariano Suassuna também não tem e vai aos casamentos!”.
Eles tinham lá suas táticas. Escolhiam sempre lugares mais “abertos” para ir, que não exigiam convite ou pulseiras das cada vez mais espaçosas e disputadas salas VIPs de hoje.
A fama espalhou-se de tal forma, que a partir de certo momento, os eventos da cidade precisavam de uma chancela física: a presença daqueles dois irmãos judeus, barbas de eremitas, um mais alto que o outro, sujeitos que não eram muito de beber, de falar alto, não gostavam de confusão, que não perdoavam uma bandeja, criaturas que ficavam pouco tempo num lugar, o suficiente para marcar presença, que depois seguiam em uma obsessiva peregrinação para outro evento, a pé.
“Chegou a tal ponto, que em um evento fraco, as pessoas diziam: Foi tão ruim que nem os Irmãos Evento apareceram”, diz Tarcísio.
O cineasta Rafael Luna Filho convidou Joel para ser ator do seu curta Eisenstein, em 2005. Ele aceitou, participou das gravações, fez o papel de um professor mas a cena acabou não entrando.
“O peso do personagem é porque ele era um Irmão Evento. A graça era essa”, diz.
Ele recorda que em 1993, abriu o livro Sociedade pernambucana, do colunista social João Alberto, e encontrou o nome dos dois: Joel e Abrahão Datz. De figurantes na cena da cidade, os Irmãos Evento tinham se tornado “colunáveis”.
Antes de sair da Sinagoga, peguei as últimas informações com meu personagem. Joel disse que dava aula particular de Matemática. É engenheiro de formação.
“Ainda faço uns projetos”, diz.
ÉPOCA ÁUREA
Depois da conversa inicial, senti que a matéria começava a existir. Na semana seguinte, atravessando o Paço Alfândega rumo a um café com um amigo, vi de longe um braço levantado. Um sujeito com barriga de bebedor de chope, camisa azul da Nike etc. Era Joel, na abertura da exposição de arte sacra da Arquidiocese de Olinda e Recife, intitulada 100 anos de missão a serviço da vida.
“Tem uns salgadinhos ali”, antecipou, enquanto mastigava algo.
Descobri imediatamente o caráter ecumênico do Irmão Evento. Um dia está numa exposição na Sinagoga, no outro, metido entre os católicos, cascavilhando uma coxinha de buffet.
Conversamos mais um pouco. Com algumas pessoas que eu tinha falado, levantando informações sobre a pauta, havia sempre uma referência à casa deles, na Praça Chora Menino. Na verdade, um casarão abandonado, que “mais parecia o cenário de Clube da Luta”, como disse Rafael Luna.
Joel disse que depois da morte do irmão, vai muito pouco lá.
“Tem também uma Brasília velha, que está se acabando”, contou meu bom personagem.
A morte do irmão, como era de se esperar, teve uma grande repercussão na vida de Joel.
Era novo (52 anos), caminhava muito, tinha saúde.
“A gente caminhava muito mesmo. Na época áurea, eu pesava 60 quilos. Agora estou com 90”.
“Senti que ele estava muito reticente em falar das coisas do passado”, conta Rafael Luna. “Entendi que essa coisa folclórica dos Irmãos Evento não era muito agradável. Eu conversava outras coisas com ele”.
A fama dos Irmãos tem também a ver com uma época áurea do centro do Recife, uma vida intelectual que passava por lugares emblemáticos, varridos da arquitetura da cidade e transformados em recordações – quando muito, reflexões.
O trecho que recentemente foi palco de rusgas entre a Prefeitura e a legião de camelôs de produtos piratas – espinafrados para outros lugares -, nos anos 1970 e 1980 era conhecido como “Quartier Latin”.
A Rua Sete de Setembro abrigava as livrarias Livro 7, Síntese e Saraiva. No Beco da Fome, os poetas independentes entornavam quartinhos de Pitú e declamavam suas novidades, ao lado das livrarias Dom Quixote e Quilombo. Ali perto, funcionava a Disco 7.
Ali perto, atrás do Cinema São Luís, bares pequenos e inventivos: Verde Que te Quero Verde, Sócrates e Ora Bolas. Na hoje arruinada Avenida Conde da Boa Vista, tinha o bar Olho Nu, onde surgiu a Banda de Pau e Corda, fora o Mustang. Atrás dele, funcionava um bar onde as garçonetes atendiam vestidas de índias, com os peitos de fora, arrancando suspiros de muitos marmanjos. Onde hoje há uma agência do Bradesco, funcionava a Funny´s, uma elogiadíssima batata frita. As redações do Jornal do Commercio e Diario de Pernambuco funcionavam no centro. As sucursais tinham uma presença forte em Pernambuco, como o Jornal do Brasil, na rua do Riachuelo, O Globo, no Cículo Católico, além de O Estado de S. Paulo.
Jornalistas, artistas plásticos, escritores, artistas, se encontravam com rara frequência em diversos lançamentos de livros, vernissages, festas, edições do Papa-figo. Tudo parecia conspirar para que a presença ostensiva daquela dupla ficasse impregnada na memória da cidade.
“A gente começou a botar umas fotos, dizia que eram eles, os irmãos ficavam orgulhosos. Eram fãs do Papa-figo. Não perdiam um lançamento”, diz Bione.
As muitas especulações envolvendo os Irmãos Evento esbarram no caráter reservado dos dois, na morte súbita morte de Abrahão, na solidão que restou a Joel. Há quem diga que eles não comiam em casa, aproveitando as aparições noturnas para atacar as bandejas. Que teriam uma loja de parafusos na Rua da Praia, que vive fechada.
A casa onde moravam está mesmo abandonada, mas Joel tem um apartamento. Não, ele não vive entre as ruínas de um casarão prestes a cair. Vai lá, dá uma olhadinha, depois segue.
“Ele não vende por questões sentimentais. Entra, fica pouco tempo. Acho que os dois eram um time. Depois que o irmão morreu, não é mais a mesma coisa”, diz Luna.
Joel diz que já tentaram por três vezes fazer documentários com eles, mas a resposta sempre foi negativa.
“Três pessoas diferentes quiseram fazer, mas nunca aceitamos. A produção do Jô Soares convidou a gente para uma entrevista, mas não fomos”.
Um dos lemas da dupla – que segue com Joel – é simples.
“Jornalistas? Não”.
Quase no final do difícil trabalho de apuração, encontrei novamente meu personagem. Ele chegou atrasadíssimo, no final da abertura da exposição sobre os 40 anos do Movimento Armorial, novamente no Paço Alfândega.
Quando me viu, veio falar comigo. Usava a camisa azul da Nike, novamente.
“Ariano está por ai?”, perguntou.
“Saiu agorinha”.
Ele lamentou muito.
“Ariano gosta muito de mim”.
Ariano Suassuna me contou que no seu aniversário de 60 anos, os Irmãos Evento foram.
Foi uma celebração na Rua do Chacon, em Casa Forte. Alguém gravou as imagens. Joel e Abrahão aparecem no documentário.
“O que um dizia, o outro completava dizendo: Concordo com tudo o que ele disse”.
Desolado com a partida de Ariano, Joel mandou ver nos salgadinhos.
Lembrei que em nosso primeiro encontro, na Sinagoga, Joel tinha me confessado algo que interessa muito ao mercado editorial.
“Estou escrevendo um livro sobre todas essas nossas coisas”.
Depois arrematou.
“Estou no segundo volume. Escrevo tudo à mão, num caderno”.
Olhou para mim, deu um sorriso e finalizou dizendo o que, de certa forma, todo mundo especula e espera.
“É muita história”.
Samarone Lima é jornalista.
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