Não é raro a imprensa dar espaço a celebridades ou artistas envolvidos em uma polêmica. Grande parte da cultura pop e midiática é construída a partir de posicionamentos frontais, questionadores ou conservadores, de seus participantes, que muitas vezes sequer se importam se isso toma uma repercussão maior que a da sua obra. Mas quando o personagem é um dos mais respeitados nomes dos quadrinhos brasileiros, tanto em popularidade como em mérito artístico, por que ele simplesmente decidiria, de uma hora para outra, se assumir como crossdresser?

Foi o que aconteceu com Laerte. Celebrado por quadrinistas e jornalistas pelo experimentalismo e pela originalidade da sua produção diária na Folha de S. Paulo, durante 2010, o autor não só revelou gostar de usar roupas e adereços associados ao guarda-roupa feminino como passou a dar entrevistas vestido com eles. Mais do que suas inquietantes tiras e o recém-lançado Muchacha, essa se tornou a temática principal de entrevistas, matérias e resenhas dos seus livros.

A verdade é que o próprio Laerte, aos 59 anos, não se esquiva de nenhuma forma do assunto que ele trouxe voluntariamente à tona. Em Muchacha, traz como um dos protagonistas o ator Djalma. O personagem, preso a papéis pobres e na maioria das vezes sem falas, se realiza profissionalmente e pessoalmente ao assumir a identidade da cantora transexual cubana que dá o nome ao livro.

Como o próprio Laerte, a obra vai bem além da temática do travestismo. Para defini-la, Laerte cunhou a expressão “graphic-folhetim”, apropriada porque descreve com perfeição o formato da narrativa, dividida em pequenos capítulos de apenas quatro quadros. Os primórdios da televisão, o pano de fundo da HQ, marcam uma relação com seu livro anterior. “Muchacha é uma história que se gerou do trabalho que eu fiz no Laertevisão, que era uma prospecção por minhas memórias televisivas, já que eu tenho quase a idade da televisão. Dentro desse mundo, comecei a pensar nos seriados de ação que existiam na década de 1950, principalmente um, chamado Falcão Negro. A partir disso, criei um seriado fictício e fiz uma história a partir dele e da vida dos personagens fora dele”, explica, por telefone, o quadrinista.

No livro, Laerte apresenta os bastidores surreais do programa centrado no herói espadachim Capitão Tigre. Com o cancelamento da atração, o ator principal, Lairo, passa a confundir realidade com ficção, tornando Muchacha um thriller pastiche que envolve alucinações, romances, viajantes do futuro, cartomantes, além, é claro, do travestismo. Em meio a isso tudo, ainda somos apresentados ao programa de animação do Morcego Frederico, visto pelo olhar distorcido (e político) do próprio Lairo. “Essa parte é uma história voltada para alucinação. Eu queria deixar o leitor com dúvidas, deixar aberturas e portas abertas para ele transitar”, afirma o quadrinista.

Um dos principais traços das produções recentes de Laerte é a sugestão implícita de aspectos da sua vida nas obras. Um exemplo é a série O santo recalcitante, publicada na Folha e republicada no blog do autor, o Manual do Minotauro (www.verbeat.org/blogs/manualdominotauro/). As tirinhas traziam Latércio, um homem santificado contra sua vontade e que busca revogar a nomeação, e os leitores imediatamente a viram como uma resposta do quadrinista aos elogios grandiloquentes de jornalistas e colegas. Laerte, enquanto assume a coincidência entre o personagem e ele, nega essa visão. “Chamar o personagem de São Latércio foi uma liberdade que me dei. Não acho que eu sou santo, claro, mas se bem que o personagem também não acha. Mas a tira não é sobre mim, não. E sobre isso de ser chamado de Deus ou gênio, o engraçado é que os que me chamam de Deus são todos ateus. Um bando de pagãos!”, brinca.

Na sequência, quando perguntado sobre o quanto há da sua vida pessoal em Muchacha, ele traz sem cerimônia para a conversa a temática do crossdressing. “O que você diz sobre o fato de ter um travesti no livro?”, questiona, dando logo em seguida a resposta: “Eu tenho mantido o comentário sobre a transexualidade mais no Muriel Total (tiras publicadas na seção de Informática da Folha de S. Paulo). No resto, é algo secundário. Mas, nesse livro, tem sim algumas coisas que resvalam na minha experiência pessoal. Tem a Muchacha, tem a mãe do Capitão Tigre, que pertence ao partidão. Eu fui do partidão, tem algo a ver com isso”, sugere. A própria experiência com os primeiros seriados de aventura da TV é parte da obra.

Afastado dos personagens fixos e da fórmula humorística das tirinhas de humor, Laerte faz de inquietações políticas, artísticas, culturais e pessoais o combustível para suas produções. “Várias coisas me estimulam a criar. Essas questões que dizem respeito ao que estou vivendo, por exemplo. E o pensamento conservador da sociedade atual, de direita mesmo, também me estimula a dar uma resposta. Me motivo a responder a alguns colunistas, também, ou a pelo menos indicar uma possível resposta. Fora isso, o que me estimula a fazer tiras são um mundo de filmes, livros, memórias. Praticamente qualquer coisa pode me interessar”, aponta.

ABANDONO DE PERSONAS

O interesse da mídia em relação ao quadrinista tem se baseado em dois polos, ambos relacionados à imagem de artista em crise, de artista em transformação que Laerte tem mantida. O primeiro deles é, naturalmente, o trabalho do autor, que, com a criação do blog Manual do Minotauro, passou a ser alvo de elogios. O site, na verdade, serviu apenas para ampliar a visibilidade e dar uma visão geral da mudança que havia começado já em 2004 e foi intensificada em 2005, com a morte do seu filho Diogo, aos 22 anos, em um acidente de carro.

Nesse tempo, Laerte deixou de lado os personagens que o consagraram, como Piratas do Tietê, Gato e Gata, Overman e Deus, e passou a construir suas tiras diárias na Folha fora da obrigação humorística, buscando levar ao limite as possibilidades do espaço. “Eu já não busco provocar uma risada. Acho que é possível, sim, rir com as minhas tiras, mas elas não são de humor. São espécies de contos”, indica. Não é o seu interesse, portanto, simplesmente superar a crise, mas se manter questionando as próprias fórmulas e premissas do seu trabalho. A atitude, ainda no começo do processo, levou dois jornais que o republicavam a cancelarem as tiras.

O segundo aspecto, no entanto, recebeu mais destaque, principalmente fora de veículos especializados em quadrinhos. A primeira aparição foi em março, na TV Uol, com unhas vermelhas e brinco, mas com pouca repercussão. Em agosto, Laerte foi entrevistado no programa Lobotomia, do cantor Lobão, também com acessórios femininos e já em maior evidência. Mas só em setembro, na Bravo!, ele se revelou de fato como adepto do crossdressing – prática de usar roupas ou acessórios vinculados ao sexo oposto – e deu as primeiras declarações sobre o assunto. A partir daí, diversas matérias se dedicaram a falar do Laerte vestido de mulher, incluindo abordagens que se dedicavam, por exemplo, apenas a tratar sobre o guarda-roupa de peças femininas do cartunista.

Antes de tudo, é difícil ver nesse discurso crossdresser de Laerte um simples impulso de provocar uma polêmica, de chocar. Confortável com as roupas – tem aparecido sempre “montado”, termo que usa para se referir ao ato de se travestir – e com as palavras, o quadrinista é ao mesmo tempo incisivo e didático ao tratar da questão. É ambíguo, tratando não como uma defesa finalizada, um processo concluído, mas uma exposição da dúvida, da dubiedade, da liberdade que é, para ele, o próprio objetivo do crossdressing.

Portanto, travestir-se não é uma forma de expor uma mulher que está dentro do corpo de um homem; a sua motivação não tem nada a ver com a sexualidade. É um questionamento, como são as suas obras, de valores e estéticas preestabelecidos. “A repressão faz parte da nossa cultura. Por si só, o fato de existirem duas formas de se vestir para que se escolha é um sinal disso. Você só pode ser homem ou mulher”, explica.

Assim, a busca do crossdresser é a de romper esses limites. “Eu quero conquistar esse espaço. As mulheres já o conquistaram há muito tempo, usam roupas de homens sem problemas. Para mim, essa fronteira não tem que existir”. O travestismo de Laerte é, então, uma problemática de gênero, é a busca de se comunicar artisticamente a partir do que ele chama de “linguagem do vestuário”. “Existem tantos gêneros quanto existem pessoas”, diz ele, citando a frase da amiga Letícia Lanz, autora do blog Arquivos de uma crossdresser.

O questionamento dessa linguagem, no entanto, não gerou grandes mudanças no quadrinista. “Continuo a mesma pessoa, ou quase a mesma”, afirma. “O fato de usar salto-alto modifica meu modo de andar, mas eu sou o mesmo. Também não aprendi nada. Estou explorando a questão do gênero para conhecer a minha feminilidade - que já não era uma completa desconhecida minha, é bom ressaltar”.

“O que eu queria era poder usar roupas ditas ‘femininas’. Na verdade, eu já descobri que posso”, avalia Laerte. Sereno, comenta as reações ao anúncio do seu travestismo: “Algumas pessoas até manifestam vontade de se vestir assim, se travestir. Têm também olhares mais atônitos, mas, em geral, tem sido algo benéfico”, aponta.

QUER ME VER SEM FARDA?
Durante toda a conversa, Laerte responde sempre sem muitos rodeios, posicionando-se de forma franca e, ao mesmo tempo, dúbia – ou melhor, aberta. Esse é o traço marcante do quadrinista, seja como autor, entrevistado ou fotografado: a rejeição das respostas e dos sentidos únicos. Tudo que se apresenta como pronto não o interessa, e, dessa forma, é até possível imaginar que os seus questionamentos vão bem além do que é apresentado publicamente.

Assim, quando pergunto, já no final da entrevista, se ele não teme que o seu discurso sobre a prática do crossdressing ofusque o alcance e a relevância dos seus quadrinhos, entendo agora que a resposta não poderia ser outra. “Eu falo do que me perguntarem”. O que parece, na verdade, é que Laerte não vê diferença entre falar sobre si ou sobre sua obra porque, para ele, não há diferença. Para o quadrinista, refletir sobre a linguagem do vestuário e sobre os gêneros é o mesmo que refletir sobre a linguagem dos quadrinhos e sobre o papel das tiras em quadrinhos. Laerte fala de si porque se transformou, também, em uma obra em construção, e a sua obra, falando de aspectos da sua vida pessoal, também se converteu no autor.

Tanto que, a despeito da várias entrevistas de Laerte sobre o crossdressing, sua melhor resposta vem em formato de tira, na série Superclose, publicada na Folha. Nela, uma voz fora do quadro diz a um militar, em close, vestindo acessórios coloridos: “Sinto atração por homens de farda”. Ao que o militar o questiona: “Quer me ver sem a farda?”. A voz afirma o que parece ser o objetivo do quadrinista em relação a si mesmo: “Quero te ver sem o homem”. A única certeza sobre o Laerte crossdresser é a de que se trata de alguém se despindo da prisão que podem ser as próprias normas da masculinidade.