“Fazer política excede os campos delimitados. Criar narrativas, documentar, imaginar nossas vidas para além de uma violência imensurável, me parece, se torna ato subversivo, vital e incontornável”, escreve via e-mail o poeta, performer, dramaturgo e artista visual Francisco Mallmann. Enquanto leio as respostas do e-mail, penso no que seria a violência imensurável, a qual o autor se referiu. A TV mostra que em outro canto do mundo os fundamentalistas do Talibã tomaram o poder do Afeganistão, após 20 anos de ocupação violenta dos Estados Unidos. No nosso próprio país, o Supremo Tribunal Federal determina apuração para saber se o presidente da República atentou ou não contra a democracia ao atacar sem provas o processo eleitoral. Para além da geopolítica e dos movimentos da grande política nacional, creio que Francisco também esteja se referindo às micro-agressões de se viver enquanto corpo e identidade altera, em uma “vida precária”, como teoriza a filósofa Judith Butler. Ser o outro, os silêncios e os esquecimentos.
A MEMÓRIA É UMA AÇÃO POLÍTICA, dizia uma bandeira branca, com texto negro, em um post feito pelo poeta no Instagram. Foi assim que ele primeiro chegou até mim, através desse post, compartilhado por um amigo, que me encantou no meio da inércia, das más notícias e da banalidade do feed. Diferente do que dizia Waly Salomão (1943─2003), Francisco Mallmann não crê que a memória seja “uma ilha de edição”, e sim um gesto de cobrar, lembrar e permanecer. É ser vida para além da “imensurável violência”, como disse.
Autor de três livros de poemas, — haverá festa com o que restar (Urutau, 2018), língua pele áspera (7Letras, 2019) e américa (Urutau, 2020) — Francisco é um artista de gestos literários baseados em uma ideia de “emoção coletiva”, dos corpos em aliança e de irmandade radical. Mas, antes de tudo, alguém que trabalha dispondo seu corpo como dispositivo de fabulação do mundo e forma de transitar — no sentido de caminhar, mesmo — entre linguagens. “Acho que cada linguagem pede algo diferente e acho que eu também faço pedidos diferentes para as linguagens”, escreve. “O trânsito, a transição, a transformação de uma coisa em outra em outra em outra coisa tem a ver com as distintas nuances do desejo e dos convites que quero acionar em cada trabalho”.
Antes mesmo de escrever a primeira palavra, como filho de pais professores, sempre teve os livros por perto. “Tenho na memória uma cena recorrente: adultos lendo para mim — lembro desse gesto lindo que é ter alguém dizendo um livro em voz alta, lembro disso como uma maneira de me localizar na vida e no espaço, de estabelecer vínculo entre as partes”. Das histórias para dormir, o trânsito entre vida e sonho, ficção e vida. A experiência de ouvir histórias antes de dormir também demarca uma primeira experiência com a leitura a partir da oralidade.
Contudo, foi depois dos diários de adolescência e da relação de leitura com autores brasileiros que começou a escrever poesia. No livro estavam os clássicos, em poemas curtos, experimentações, “espírito jovem” e todas essas coisas que ajudaram a definir a poesia contemporânea no Brasil. A coletânea reunia materiais de Ana Cristina Cesar, Cacaso, Chacal, Francisco Alvim e Paulo Leminski. “Eu lembro que tudo mudou — a ponto disso se tornar uma abertura para a minha criação. Um entendimento de que a poesia podia se desassemelhar do que me era apresentado como ‘poesia’ até então”. Em seguida, conheceu o poeta Wilson Bueno (1949─2010), que lhe apresentou tanto uma outra forma de ver a cidade quanto o Yeguas del Apocalipsis, grupo chileno em que artistas incorporam versões femininas dos cavaleiros do Apocalipse como manifesto artístico e forma decolonial de se pensar o corpo. Ambos foram fontes inquestionáveis de inspiração.
Hoje, se quisermos pensar em literatura e crise nacional, temos um longo repertório. Mas foi em seu primeiro livro, haverá festa com o que restar (2018), que localizei chaves possíveis para ler a crise enquanto poesia. O haverá festa nos propõe a pensar no que faremos com o que sobrar do “fim do mundo” e tem grandes méritos por captar o zeitgeist do olho do furacão que foi 2018. “O exercício que me propus no haverá festa foi de desenhar um livro com minha criação em poesia — chamar de ‘obra’ coisas que estavam espalhadas. Eu acho, sim, que há, a partir de 2016, nas minhas criações, uma denúncia que faz referência direta à política institucional brasileira. Desde o golpe que destituiu a presidenta Dilma, isso se tornou uma massa que passei a manusear de diferentes modos no poema. Acho que eu ‘capto’ isso, por assim dizer, porque sempre estive em contato com coletividades completamente implicadas em pautas, ações e debates políticos — dos mais aos menos institucionais”, explica. Pensar num futuro (com esperança, até) quando não há futuro. É como se transformasse o No future, bandeira existencial do punk e da banda Sex Pistols, em uma marcha de carnaval. Numa sessão intitulada IV o que faremos com ele, em que aborda o que faria com o impossível, ele escreve:
recriaremos o ocidente
dessa vez sem deus
só para ver no que dá
Em questão de corpo e linguagem, seu primeiro livro é carregado tanto com o poder da reiteração dos versos — como no poema uma homenagem para a angélica freitas, em que todo verso se inicia com “uma bicha” —, quanto o formato poema pílula, de versos curtos e pungentes.
O manuseio da crise não transformou suas obras em tratados sociológicos. Estão atravessadas pelos amores, pelas memórias e pelo corpo do autor posto à disposição. A arte do poeta se alastra numa espécie de modo-de-fazer baseado na alteridade de uma “poesia-bicha”, como ele mesmo chama. A definição: “Algumas coisas têm sido importantes no que tenho pensado sobre poesia-bicha: o espanto com a língua, o susto de ser alguém marcado via diferença compulsória, a tentativa de emancipação via linguagem, a criação em coletivo, o amor desviante, o sul do mundo como espaço de articulação, a radicalidade circunscrita na não-assimilação, o fim do mundo como nos foi apresentado, o desfazimento de uma métrica normativa e compulsória para as existências, relações e desejos, a irmandade com o impossível, as muitas noções de revolução, os trânsitos entre o visível e o invisível, as práticas e existências incapturáveis, e a irreconciliação”, diz.
Já em américa (2020), existe uma espécie de radicalização do projeto a partir de uma questão de linguagem, da oralidade muito forte e um texto pensado como dramaturgia, numa abordagem mais relativa à decolonialidade. “américa, de fato, é um projeto que intersecciona as minhas criações: dramaturgia, poesia, instalação, performance. O texto que existe foi feito em voz alta. Eu passei 3 meses em sala de ensaio, dizendo coisas e gravando o áudio. Depois, me escutei, transcrevi e editei. Tudo o que foi registrado no papel, foi escrito em voz alta. O texto veio da falação desenfreada”, pontua. Um livro enquanto possibilidades: memorial, arquivo, registro, anúncio e reunião. No início do texto, ele propõe uma forma de ler pensada enquanto canto, e nisso a voz é o dispositivo de presentificação do poema:
esse texto foi criado em voz alta
para ser lido em voz alta
para ser impresso em voz alta
para ser publicado em voz alta
para ser partilhado em voz alta
para ser silenciado em voz alta
para ser esquecido em voz alta
Após o lançamento em livro, américa ganhou uma espécie de performance coletiva chamada public-ação. Criada com a artista visual Thalita Sejanes, a performance operava uma espécie de “detonação”: as páginas com trabalhos de vários artistas surgem feitas de papel adesivo e carregam em si o convite para serem coladas no espaço público. A obra se faz, portanto, ao ser desfeita.
“MAYBE THE INTERNET RAISED US” [nota 1]
Uma das formas que Francisco Mallmann encontrou de desfazer a literatura em outros suportes foi através da internet. Para quem produz arte e lança ela nas redes sociais, o feed de uma tem uma potência muito ambígua do ponto de vista do capitalismo: é uma janela para produção de artista ou até mesmo uma espécie de curadoria própria afastada da grande mídia, mas também um grande dispositivo publicitário a serviço das grandes corporações. “Eu sou dessa geração que foi conhecendo a internet durante a adolescência. Eu me lembro de escrever em blogs, de encontrar artistas, escritoras e poetas criando nesses espaços, eu me lembro dos fotologs, das comunidades do Orkut. Eu me lembro das conversas no MSN”, escreve.
Com a sofisticação do suporte, a internet passou a carregar em si possibilidades de circulação, nas quais a criação de discursos, imagens e informações também pode se dar por comunidades, grupos, pessoas ou existências que, muitas vezes, social e historicamente, não tiveram possibilidade de o fazer senão mediadas por circuitos de consagração em que suas vidas não importavam. Apesar disso, as redes sociais enquanto lugar de criação ainda inquieta Francisco. “Acho que minha relação tem mudado. Duas coisas me assustaram, em entrevistas: uma delas foi quando uma jornalista me chamou de ‘poeta do Instagram’; e, outra, quando um jornalista se referiu às bandeiras como criação de ‘slogans’. Não acho que nenhum deles estava, propriamente, produzindo um juízo de valor ou mesmo produzindo alguma crítica mais consistente e elaborada sobre o meu trabalho — mas me revelou como meu modo de compartilhar imagens e criações nas redes sociais estava levando a leituras de que eu produzia poesia para aquela plataforma, ou que uma criação em poesia visual era um slogan de algum produto”, explica o autor.
Uma das frases e artes que se propaga nas redes da qual se refere Francisco é uma série de bandeiras. O ato de fincar uma bandeira é um gesto performado repetidamente, principalmente, por ações militares. Fincar bandeira é delimitar um espaço: torná-lo uma extensão do seu domínio ou até mesmo do seu lar. Como descreveria Judith Butler, em Corpos em aliança e a política das ruas, esse gesto pode ser lido até como performativo por ser um exercício de esse exercício de gênero quanto a reivindicação política de igualdade corporificada, dentro do espaço público.
“Penso mesmo o seguinte, ao instalar as bandeiras: a palavra é disputa, o sentido é coletivo, a língua é matéria que vibra, viver vida não é simples. Também penso sobre os espaços: disputa, sentido, coletivo, matéria, vibração, vida viva”, diz o poeta. Uma das obras diz: AMÉRICA ÉMARICA. Como uma extensão da obra-livro, a bandeira ocupa a rua enquanto espaço de trabalho. “Uma vez, uma senhora me disse: ‘Que bonito, você encontrou um lar para as maricas dentro da américa. Elas sempre estiveram dentro do nome e quase ninguém viu’”.
Para encontrar um lar para as maricas, Mallmann dispõe seu corpo e espraia linguagens, forma de trabalhar traumas e encontrar encontrar noções de dívida, reparação, restituição — dimensões articuladas nesse ininterrupto genocídio que é o Brasil. É desta forma que se coloca como um participante da política: como parte de uma “ação concertada e coletiva” baseada em “agir e peticionar dentro dos termos da igualdade, como um ator em pé de igualdade com os outros”, como diz Judith Butler.
Para alguém que começou “um projeto literário” pensando no que faria depois que tudo passasse, o poeta agora busca na ideia de escuro um lugar sem forma, um vazio. “Tenho me interessado, agora, sobre o escuro, a escuridão, e um lugar sem formas. Uma espécie de território onde o corpo possa se desfazer desses marcadores coloniais. Uma espécie de interrupção da violência, da história sanguinolenta”, explica. Numa perspectiva decolonial, trata-se de uma crítica à ideia iluminista e eurocentrada da luz do conhecimento, de ideias de clareza e iluminação. A partir da obra do autor, parece um gesto para alcançar outro nível de abstração para sua ideia de política. “Não sei onde exatamente essa investigação pode e vai me levar”, ele diz, como quem busca tatear algo, que os olhos não enxergam.
NOTAS
[nota 1] Trecho de World Alone, canção de Lorde.