Abaixo, um breve depoimento de Victor da Rosa, crítico literário e professor da Universidade Federal de Ouro Preto (MG), sobre Sérgio Sant'Anna (1941-2020), um dos maiores escritores do país, falecido neste domingo (10). O depoimento tanto explica, em linhas gerais, porque Sant'Anna foi tão importante e mostra seu genuíno interesse por aqueles e aquelas que escrevem e leem.
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O Sérgio Sant’Anna não era só o narrador em atividade mais importante da nossa literatura, era também um modelo de artista; alguém que aos 78 anos seguia se reinventando por meio dos seus livros e escrevendo com uma vitalidade, uma paixão e até um romantismo que desafiava a sua própria obra e a sua vida – assim como desafiava também o seu lugar de mestre, lugar que recusava com um senso de elegância muito próprio e incomum. Isso não é para qualquer um, e na minha opinião é o maior legado que ele deixa, junto dos seus vinte livros, entre romances, poemas, teatro e principalmente contos.
Há duas semanas, publicou um conto inédito na Folha de S. Paulo; também sabemos que estava escrevendo um novo livro, que talvez fosse diferente de tudo que escreveu até agora, embora profundamente ligado a tudo que escreveu, e que talvez pudesse ser o melhor ou o pior de todos os seus livros. Isso podia acontecer com o Sérgio, que seguia escrevendo, a cada livro novo, um livro realmente novo, surpreendente. Nesse sentido, o Sérgio foi um romântico, talvez o último escritor de vanguarda do Brasil.
Por fazer uma literatura tão singular, ninguém jamais conseguiu imitá-la; e por ser essa literatura tão enigmática, ninguém ainda conseguiu entendê-la muito bem. Por isso que amamos tanto os seus livros: porque não podemos nem imitá-los e nem entendê-los por completo. A influência que deixa nos escritores mais jovens é difusa justamente porque profunda.
Para mim, uma das grandes belezas da literatura do Sérgio consiste em manter em constante tensão forças opostas; é uma literatura ao mesmo tempo trágica e prosaica, alegre e melancólica, iluminada e noturna, em suma, um crime delicado, que exige de nós leitores novos olhos para entendê-la, dever ético de toda grande obra de arte.
Gostaria de ter conhecido pessoalmente o Sérgio, sobretudo de ter feito uma longa entrevista com ele sobre literatura e futebol, acho que os dois jogos que mais amamos. É de sua autoria os contos mais belos sobre futebol escritos no Brasil, Páginas sem glória e Na boca do túnel. Mesmo assim, ele fez parte da minha vida de estudante de letras, e de um jeito que significou muito para mim. Em 2005, foi sobre ele quem escrevi, aos 20 anos, o primeiro artigo que publiquei em jornal. Era um texto pretensioso e enorme, de umas seis ou sete laudas.
Como eu também era pretensioso, enviei o jornal pelo correio para o Sérgio, depois de ter conseguido seu endereço com uma professora; e alguns dias depois ele me escreveu um e-mail com um comentário no qual agradecia, elogiava certas partes do artigo e fazia críticas a outras. Foi um momento muito revelador para mim, que já sentia a vida modificada pela literatura. Mais do que a alegria de dialogar com um escritor de verdade, embora eu ainda não soubesse que ele era o maior, ele me tratava também como um leitor, um crítico de verdade. Era como se eu fizesse parte de algo.
Daí a gente morrer um pedaço com a morte do Sérgio, pois morre também um pouco da nossa história, da literatura feita no Brasil, do próprio país. Obrigado, mestre, pela vida e pelos livros que escreveu. Estamos muito mais pobres agora, mas a literatura do Sérgio também nos ensina que podemos ser exigentes e criativos com as nossas misérias.