Perfil Mariana Garay Divulgacao out19

 

“Projetar poder sem projetar vulnerabilidade”, escreve Grégoire Chamayou em Teoria do drone [nota 1], livro no qual o teórico dedicou-se a submeter os drones a minuciosa investigação filosófica. A frase foi tomada por Chamayou como uma espécie de método, a partir da declaração de um oficial da força aérea norte-americana, para compreender, por diversas frentes, o uso militar das pequenas máquinas voadoras. No livro, então, encontra-se uma análise de como a presença dos drones altera o espaço, a soberania do Estado, dos corpos e de exercícios e legitimação do que se entende como poder no contexto violento das formas de expansão de territórios, por exemplo. Na linguagem militar, os drones são conhecidos como “veículos de combate aéreo não tripulados” (unmanned combat air vehicle, UCAV) e os países pioneiros em seu uso são os Estados Unidos e Israel. Por meio da intermediação – não existe luta concreta entre corpos quando se trata de drones – e do abate iminente, o artefato é peça central para a estruturação política territorial criminosa do Estado de Israel diante da Palestina.

Pensar no mecanismo de destruição e monitoramento operado pelos drones faz parte de um contexto que envolve o eixo: capitalismo, tecnologia militar, perder territórios e valor dos corpos. Dentro de um sistema de imunização da comunidade, no qual existe uma proteção negativa da vida; ou seja, os corpos são protegidos de maneira que sempre exista algo que os ameace [nota 2], os drones são como um infiltrado com poderes decisivos em elementos de formação política dos espaços e dos corpos. Voando livres, modificam o nosso modo de visão e reciprocidade, sem que possamos contestá-los.

Na literatura hispanoamericana contemporânea, os projetos da autora chilena Lina Meruane estão na pista de uma característica potente e inquietante dos drones: ver o que tem que ser visto, mapear o que precisa ser mapeado. Porém, a autora, nascida em 1970, coloca-se justo no lugar onde nenhuma máquina alada pode alcançar: o lugar da alteridade que só um corpo pode reconhecer em outro e assim sucessivamente. Seus textos híbridos – ensaios, crônicas – e romances operam como um drone-reverso, puxando o capitalismo, os territórios perdidos e os corpos latino-americanos para uma dinâmica de constante questionamento e visibilidade aguda.

Meruane vive hoje nos Estados Unidos e leciona cultura latino-americana e escrita criativa na Universidade de Nova York (NYU). Foi premiada com o Sor Juana Inés de la Cruz (México, 2012) e o Anna Seghers (Berlim, 2011), além de bolsas de escrita ao redor do mundo. No Brasil, em 2015, publicou pela Cosac Naify o romance Sangue no olho. Em 2018, ela voltou às prateleiras do país com o polêmico Contra os filhos (Todavia), ensaio no qual argumenta sobre a maternidade compulsória e suas relações com o sistema capitalista de trabalho. Agora, a Relicário Edições lança Tornar-se palestina [nota 3], um misto de ensaio e crônica de viagem, resultado das incursões da autora em seu passado familiar ligado à origem palestina e às diversas formas de pertencimento dentro daquele território.

Em setembro, Meruane esteve em São Paulo para o lançamento – um deles foi no espaço palestino Al Janiah – no bar, restaurante e centro cultural que, horas depois, foi atacado por um grupo de pessoas com facas e spray de pimenta – ninguém ficou ferido; e conversou comigo sobre os dois últimos livros publicados no Brasil e os dispositivos que operam para a manutenção do capital. Durante nossa conversa, pensei bastante em como os dias nos países do sul do mundo estão cada vez mais restritos para quem decide, de fato, usar o mecanismo do olhar. E direcionar esse olhar ao externo, ao que se desvia, fora da rota dos drones militares. Lembro, então, os processos de desterritorialização, vistos por Gilles Deleuze [nota 4], nos quais se afirma que um território só se vale em relação ao constante mover-se dentro e fora, assim como também funciona o pensamento; ou seja, que se circule para, enfim, descentralizar. Esses deslocamentos do olhar estão presentes na obra da chilena e são registros de um tempo que nos coloca na linha de abate e que encontra, na escrita, uma forma contínua de responder a pergunta: você quer viver ou quer morrer?

A DISPUTA – O QUE É MEU ESTÁ AQUI

Na primeira parte de Tornar-se palestina, a autora traça uma espécie de mapa afetivo-recordativo do passado de seu pai e seus avós, imigrantes palestinos. Lina afirma que, durante a viagem, anotava bastante suas impressões à noite e em trânsito, como uma espécie de diário de impressões, conversas nas ruas, registros cotidianos. “Esse livro, diferente dos outros, eu não havia planejado escrever. E foi surgindo por uma série de circunstâncias de emissários que estavam me chamando, como aparece no livro, um certo elemento mágico que convergiu para uma espécie de chamado palestino para mim. A violência que senti no aeroporto, durante o interrogatório com os membros da inteligência israelense, todo o processo angustioso que passei ali envolvendo passaporte até chegar ao avião... Quando me sentei, pedi uma caneta à senhora ao meu lado e comecei a escrever para tirar do meu corpo aquele estresse”, afirma a escritora.

Foi no início desse trajeto que Meruane encontrou-se diante do elemento de detonação necessário para a escrita. “Em todos os meus livros, existe uma experiência forte, dura, violenta que reverbera na necessidade de escrever. Não se trata apenas de algo que acontece comigo, claro, mas é como um primeiro impulso que está aí, o princípio da escrita. Formei um pequeno arquivo para essa primeira parte e recorria a ela quando comecei a formular, de fato, o texto. Ali estavam os detalhes da viagem, mas também começaram a aparecer investigações sobre a minha família, porque logo compreendi que havia uma história familiar que eu não conhecia, me dei conta de que eu nunca havia perguntado sobre ela e que meu pai não lembrava muito dela ou, na verdade, também nem a conhecia muito bem”, conta.

No original, o livro se chama Volverse palestina, o que remete a um movimento de eterno retorno e aponta para onde se volta, não só para quem se torna. Sujeito e espaço misturam-se nas bordas dos deslocamentos. No primeiro parágrafo, a Palestina aparece como um território ainda fantasmagórico. A narradora admite que nunca esteve lá, mas que ali existe algo que é seu e de seus anteriores: “Retornar. Este é o verbo que me assalta toda vez que penso na possibilidade da Palestina. Digo para mim mesma: não seria um regresso, apenas uma visita a uma terra em que nunca estive, da qual não tenho uma única imagem própria. A Palestina sempre foi para mim um rumor de fundo, uma história à qual recorrer para salvar da extinção uma origem compartilhada. Não seria um retorno meu. Seria um retorno emprestado, um regressar no lugar de outro. De meu avô. De meu pai”.

Dessa maneira, existe um movimento no qual a memória entra como parte constitutiva do que é narrado e isso inclui a falta de certeza dos eventos, as lacunas, o indizível que pode tornar-se dizível. Como afirma Giorgio Agamben, se pensarmos na literatura do testemunho, é uma narrativa na qual algo que se coloca entre uma possibilidade e uma impossibilidade de fala. “Conheci muitos momentos dolorosos da família que não estavam presentes nos relatos que eu tinha. Quando o meu pai leu essas primeiras páginas, recordou algumas coisas como, por exemplo, os nomes originais de meus avós. O texto, a experiência vivida, foi motivo para a retroalimentação da memória”, pontua Meruane. Monta-se, então, um mosaico dentro do mosaico dos sobreviventes, como se entrássemos em um túnel no qual essas relações de silêncio e fala fossem ficando cada vez mais imbricadas e ressoadas; no eco se encontra também o que antes era o desconhecido e assim seguimos, como leitores, esse caminho recortado.

Na segunda etapa do livro, a autora faz uma viagem à biblioteca. De acordo com Meruane, no texto encontra-se uma análise da dimensão histórica do conflito Palestina versus Israel por meio da construção de diálogos com pensadores palestinos e israelenses que estavam mais autorizados a argumentar sobre essas questões. “Eu não sou de lá e nem vivo aquela rotina, não é meu lugar de fala e vi que precisava pensar a reflexão daquele lugar também pelo outro que o experimentou tão bem e por tanto tempo”. Autores judeus como Susan Sontag e Amós Oz aparecem nesses parágrafos de diálogos literários. “Assim, nessas duas frentes do texto, observo que a linguagem pode ser uma arma subversiva, de iluminação à realidade, mas também oculta e distorce o que é real em lugares de disputa, como no território palestino”, reflete.

Em alguns pontos do livro, a autora utiliza o microcosmo social e subjetivo para expandir a questão da soberania, como no trecho: “Um dia este já foi um lugar vibrante, cheio de palestinos. Agora vemos bem poucos por essas bandas. De dia quase todos são israelenses ou turistas. Jafa foi ficando cara. Uma família de classe média como a de Zima não consegue mais comprar aqui. Uma forma de mantê-los sem propriedade. O governo pode dizer que não impede a compra, mas o aumento dos preços é outra forma velada de impossibilitá-la. Outra forma de expropriação dos palestinos”. Com esse tipo de lente de aumento, tem-se uma proximidade que nenhum tipo de drone conseguirá do conflito, algo que faz parte da dinâmica do reconhecimento que insiste nas relações apesar do sistema violento, militarizado e excludente. Segundo Meruane, o livro continua a ser escrito. “Estou trabalhando em uma terceira parte que foca na questão da identidade a partir dos rostos. Alguns rostos têm privilégios de passagem e existe uma ambiguidade nessa relação, também com os mecanismos de face recognition que pretendo investigar.”

Durante a nossa conversa, cheguei à conclusão de que, apesar de assuntos muito distintos, Contra os filhos e Tornar-se palestina, seus recentes textos no Brasil, são análises que, de certa maneira, vão de encontro ao capitalismo e ao que se espera de um corpo dentro das leituras hegemônicas e da perspectiva do trabalho. A autora escreveu os dois ao mesmo tempo – chaves de leitura que se voltam ao outro e ao que significa uma formação familiar, não se contrapondo em medida exata, mas contextualizando uma quebra do ritmo sistêmico que dita as regras do jogo; projetando poder e projetando vulnerabilidade, ao mesmo tempo, no território literário.


NOTAS

[nota 1]. O livro foi publicado, no Brasil, pela extinta Cosac Naify, em 2015.

[nota 2]. Referência à ideia de communitas e immunitas, discutida pelo filósofo italiano Roberto Esposito em seus estudos sobre a biopolítica e o conceito de comunidade.

[nota 3]. O livro faz parte da Coleção Nosotras, organizada pela editora Maíra Nassif e pela tradutora Mariana Sanchez, com foco em textos híbridos e ensiaos de autoras latino-americanas. Os próximos títulos a serem publicados: Y por mirarlo todo, nada veía, de Margo Glantz, e La hermana menor: un retrato de Silvina Ocampo, de Mariana Enríquez.

[nota 4]. Definição que se encontra em O abecedário de Gilles Deleuze, de 1989.