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Durante que estávamos assim fora de marcha em rota, tempo de descanso, em que eu mais amizade queria, Diadorim só falava nos extremos do assunto. Matar, matar, sangue manda sangue.
Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas

 

Quando da sua performance na Flip 2017, a poeta Adelaide Ivánova fez uma lista descrevendo algumas imagens de mulheres assassinadas, entre famosas e anônimas, possíveis de se encontrar online. Iara Iavelberg (1944-1971), guerrilheira e companheira de Carlos Lamarca, era uma delas.

O corpo de Iara Iavelberg foi fotografado só de calça, com um pedaço de papel ou pano cobrindo seu torso nu. Iara Iavelberg foi executada em 1971 por agentes do DOI-CODI”, descreveu Ivánova durante sua fala.

Nunca havia visto a foto de Iara assassinada até poucos momentos antes de começar a escrever esse texto. No entanto, lembrava muito outro retrato dela, ainda adolescente, com cabelos longos, sorridente, e olhando para o alto, fixando os olhos para algo fora do alcance da lente como pedia a etiqueta da época. Na busca por imagens suas no Google, seu nome é vinculado a categorias como “ditadura militar”, “militante”, “Lamarca”, “guerrilheira”,“terroristas” e a um inusitado “evidências contundentes”. Mas para a crítica literária e professora emérita da USP, Walnice Nogueira Galvão, a legenda que melhor se aplicaria a Iara é a de “donzela-guerreira”.

É para Iara Iavelberg que foi dedicado A donzela-guerreira – um estudo de gênero, uma das obras mais importantes de Walnice, que agora completa 20 anos. “A Iara era minha amiga. Dediquei o livro a ela e não disse nada, não fiz alarde. Foi uma época muito triste, em que perdi muitas amigas, colegas, alunas, todas com 20 e poucos anos, bonitas. Elas tiveram um destino histórico”, lembra a crítica, durante uma entrevista em seu apartamento na capital paulistana em agosto. Segundo diz no livro, há apenas dois destinos possíveis para a donzela-guerreira: morrer, que é o destino perfeito; ou casar, o destino imperfeito.

Publicado apenas em 1998, o estudo começou a ser gestado no imaginário de Walnice quando da sua tese de doutoramento, As formas do falso: um estudo sobre a ambiguidade em Grande sertão: veredas, defendida em 1970. A figura da donzela-guerreira Diadorim, digamos, “sobrou” no trabalho e ficou sobrevoando sua imaginação. De um lado, as personagens da literatura; de outro, o destino de mulheres como Iara ao seu redor.

Essas personagens frequentam a literatura, as civilizações, as culturas, as épocas, a História, a mitologia. Filha de pai sem curso de mãe, seu destino é assexuado, não pode ter amante nem filho. Interrompe a cadeia das gerações, como se fosse um desvio do tronco central e a natureza a abandonasse por inviabilidade. Sua potência é para trás, para o pai; enquanto ela for só do pai, não tomará outro homem. Mulher maior, de um lado, acima da determinação anatômica; menor, de outro, suspensa de acesso à maturidade, presa ao laço paterno, mutilada nos múltiplos papéis que a natureza e sociedade lhe oferecem”, descreve, num trecho do livro, o perfil dessas personagens.

O mito da donzela-guerreira é ligado essencialmente à criação de identidades nacionais. Um dos exemplos definidores do mito podemos encontrar no século V chinês, com a balada de Hua Mulan. Outro, na história de Joana D’Arc. São mulheres que vão à guerra para substituir o pai, sem irmãos. Mulheres que fazem o papel de homem na ausência do próprio. Que promovem uma espécie de conciliação entre o masculino e feminino. Personagens que precisam assumir guerras geradas por outros. Hua Mulan sucedeu ao pai nos campos de batalha. A donzela-guerreira de Rosa abdicou da identidade feminina para vingar a morte do pai, combatendo pelos sertões lado a lado com um bando de jagunços.

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No Brasil, além de Diadorim, há os casos de Iracema, de José de Alencar, sobretudo na cena em que a índia assume o controle da situação dramática ao drogar o colonizador branco Martim, e também certas passagens de Senhora, também de Alencar. “A personagem de Senhora (Aurélia Camargo) diz algumas das coisas mais fortes que uma personagem pode dizer na literatura. Ela é impressionante. As pessoas esquecem desse lado forte do Alencar e só pensam nele como um romântico sem força. Há também a Dona Severa, de Guerra dos mascates, ainda que Alencar a trate de forma irônica, como uma caricatura”, continua Walnice.

A donzela-guerreira foi lançado num momento em que o feminismo, como lembra a crítica, não estava “infelizmente no centro das discussões”, tal e qual ocorre hoje num mundo interligado por redes sociais e por hashtags de denúncias. “Eu acho essa nova onda feminista maravilhosa, porque as mulheres estão conseguindo coisas que nós nunca imaginávamos. É claro que existem campos de disputa em meio a esse feminismo. Há o feminismo da mulher negra, que diz que o da mulher branca pode prejudicá-lo. E pode mesmo. Há o feminismo da mulher trans, que tem suas questões, que respeito. Ainda que compreenda todas essas divisões, sou mais a favor de alianças”, diz.

Nos anos 1970, Walnice montou em sua casa um grupo para discussões feministas. “Era muito difícil falar sobre feminismo naquela época. Ser feminista era xingamento. Conheci mulheres que passavam a vida inteira trabalhando com questões de mulheres, mas diziam ‘não me chame de feminista’. Só que o que elas faziam era feminismo. Para mim era tão óbvio.”

“Não se esqueça de que sou fruto da primeira onda feminista, dos anos 1970. Nessa época, também havia disputas. Havia o feminismo que não aceitava as lésbicas. E as feministas lésbicas diziam que seu feminismo era mais radical, e era de fato, que o das mulheres heterossexuais de classe média. Mas, como disse, sou a favor de alianças.”

Chama a atenção em A donzela-guerreira, e mesmo no espectro da crítica feita por Walnice, a ausência de Rachel de Queiroz (1919-2003), criadora de fortes figuras femininas. Uma ausência justificável, a partir de uma decisão política. “Dizem que ela foi amiga dos militares. Ela não era amiga. Ela foi do Conselho Federal de Educação durante a ditadura. Rachel foi um aparelho da ditadura. Eu gostava muito de O quinze, o primeiro livro dela, depois de Caminhos de pedra, depois me desinteressei completamente. Ela ficou louvando muito a oligarquia e isso era um pouco demais, eu não podia suportar uma coisa dessas. Eu nunca nem quis falar com ela, nunca.”.


NOTURNO DO BRASIL

A donzela-guerreira não foi o único trabalho de Walnice em que a pesquisa literária acabou sendo atravessada pela vida. Trata-se de uma uma constante. O mesmo aconteceu com No calor da hora – A Guerra de Canudos nos jornais (1973). O livro surgiu do seu pavor diante da manipulação que via nos jornais dos anos 1970, em paralelo com as pesquisas que fazia da obra de Euclides da Cunha (1866-1909).

“A realidade não aparecia nas notícias. Era tudo manipulado. Ainda hoje é tudo manipulado”, diz. “Todo dia (nos anos 1970) um jornal dizia que um guerrilheiro, que eles chamavam de terrorista, havia se jogado na frente de um ônibus, depois de ter denunciado um companheiro. Mas eu sabia que era mentira. Eles estavam torturando e matando as pessoas. Eu sabia disso porque convivia no meio.”

Walnice ainda evita ler o noticiário da imprensa brasileira. “Não leio nada. Enquanto eu fazia a pesquisa para No calor da hora, vi o trabalho sujo da imprensa. Os jornais tiveram um papel sórdido, estigmatizaram o povo de Canudos com suas fake news e manipulações. As pessoas tratam o termo fake news como uma novidade, mas para mim não é. O jornal serve para fazer lavagem cerebral. Não leio mais jornal. Eu não quero isso para mim. É uma decisão que tomei nos anos 1970.”

Grande sertão: veredas e Os sertões são os dois livros que marcaram a carreira de Walnice. Dois grandes monumentos de linguagem. E também duas obras que tratam dos conflitos de classe no Brasil. Há dois anos, ela foi responsável pela edição crítica do clássico de Euclides, lançada pela editora Ubu. Nos anos 1990, chegou a trabalhar numa edição crítica de Grande sertão, que acabou ficando incompleta por falta de recursos para o término da pesquisa.

“Tanto o Guimarães Rosa quanto o Euclides, não podemos negar, tinham uma simpatia enorme pela oligarquia”, diz Walnice. “Mas o retrato que o Guimarães faz da plebe brasileira no romance é impressionante. E no caso do Euclides, ora, ali tem um homem de educação militar que fez uma travessia, que passou para o lado de lá, quando ninguém passava de lado. Quando ele foi enviado para cobrir Canudos, ficou dividido. Foi como se um raio caísse na cabeça dele. Acho que o Euclides se tornou um desesperado para o resto da vida com o tanto que viveu ali. Ele teve a criação numa escola militar, que era a melhor que o Brasil dispunha na época em termos de educação. Na escola militar se ensinava que o ideal da república era o militar. Eles foram para Canudos para defender a república dos monarquistas e dos católicos, segundo pregava a imprensa. Mas Canudos era outra coisa. Canudos era o atraso que se precipitava contra a modernidade da república”.

E arremata: “A república brasileira nasceu de um golpe. Um golpe militar, que instaurou uma ditadura.”

Numa entrevista recente, Walnice chegou a dizer que Euclides hoje “estaria liderando o MST. É a consequência lógica do que ele escreveu. O MST gosta muito dele”. E numa sequência de No calor da hora escreveu: “Os sertões funcionou como uma espécie de mea culpa coletiva da elite brasileira, que havia se mantido indiferente às atrocidades cometidas contra os seguidores de Antonio Conselheiro durante a Guerra de Canudos e que exorcizava seu complexo de culpa, passada a guerra, no livro de Euclides da Cunha. Qual a posição do intelectual brasileiro hoje em um país que tem a segunda pior distribuição de renda do mundo?” (e lembrar que essa pergunta foi feita lá atrás, ainda nos anos 1970, quando não era muito aconselhável fazer esse tipo de pergunta...).  

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DE VOLTA AO CALOR DA HORA

“É muito curioso o que a literatura faz com a realidade. O que ela transfigura da realidade, você pode sempre usar numa outra conjuntura”, afirma Walnice diante das provas que pegou para a correção final do seu novo projeto, a ser lançado este mês. Desta vez não foi a ditadura dos anos 1960 e 1970, mas o momento político atual que inspirou A águia e o leão, seleção de escritos políticos e crítica social assinados por Victor Hugo.

Quando do processo que levou ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff,  Walnice se viu inquieta, sem conseguir dormir direito. Diagnóstico: estava deprimida diante da possibilidade de uma outra era de repressão política no Brasil. “Toda aquela lama que parecia ter desaparecido, foi revolvida novamente e voltou à superfície”, diz. Pensou até em sair do Brasil. Mas para onde num mundo de clara ascensão fascista? “O que adianta sair do Brasil, quando está tudo péssimo?”, pergunta, indignada.

Mas foi na leitura dos textos de Victor Hugo que encontrou munição para lidar com a crise atual. “Eu sempre tenho uma série de projetos ao mesmo tempo, mas parei tudo para me dedicar ao Victor Hugo. Quando você lê as coisas dele (faz cara de espanto), dá até vontade de rir de como ele é atual, de como ele está falando de coisas que estamos vivendo agora.” Entre essas “coisas que estamos vivendo agora”, a gratuidade do ensino público e os direitos dos trabalhadores.

“Poucos escritores foram tão solidários com o povo quanto Victor Hugo”, atesta Walnice. O escritor francês viveu num século de revoluções intermitentes, que assistiu à ascensão do proletariado industrial e à politização dos artistas. “Victor Hugo tratou de ‘descer na vida’ ao aliar-se às causas do povo repetidas vezes, correndo o risco de perder, como de fato perdeu, seus privilégios. Em prosa e verso, em ficção e poesia, em discursos na Assembleia ou no Senado, no jornal e no panfleto, em elogios fúnebres ao pé do túmulo, lá está ele defendendo o povo, mostrando-o na paz e na insurreição, nos afazeres do dia a dia ou nos extremos da miséria, transbordando de empatia, pondo seu talento a serviço dele. Foi assim que cobriu as convulsões do século XIX”, aponta no texto de apresentação do livro, que traz tanto fragmentos de discursos parlamentares quanto de obras de ficção (ver box ao lado).

Com Victor Hugo encerrado, Walnice tem mais tempo para se dedicar a um novo projeto para 2019. Desta vez, organiza a reunião completa dos contos daquela que tantas vezes escreveu no calor da hora: Lygia Fagundes Telles. A obra sairá pela Companhia das Letras.

 

* Nota da edição: após o fechamento da edição de outubro, fomos informados que Os contos, que reúne a prosa breve de Lygia Fagundes Telles, será lançado em novembro de 2018 pela Companhia das Letras. 

 

> Schneider Carpeggiani, doutor em Teoria Literária e curador de eventos literários, é editor do Pernambuco