Da primeira vez, era uma madrugada na década de 1940, e a jovem de vinte e poucos anos levantou-se da cama, com passos firmes, e começou a proferir frases em alemão, idioma que desconhecia por completo. Seu marido, assustado, ficou imóvel, sem saber o que fazer – até o momento em que resolveu pedir ajuda. Foi uma vizinha quem esclareceu – sua esposa estava recebendo um espírito. Os moradores daquela casa no interior de São Paulo não ficaram com os cabelos em pé nem sentiram suas pernas tremerem. Pelo contrário: encararam a mensagem do além como sinal de que, a partir daquele momento, tudo iria mudar. Já pressentiam que, do susto de uma madrugada, viria a consagração de uma vida inteira. A moça em questão era Zibia Gasparetto, a médium mais famosa do Brasil. O chamado daquela noite serviu como ponto de partida para uma vida – espiritual e material – de muito sucesso. Aos 83 anos, Zibia Gasparetto é um fenômeno editorial. Já publicou mais de 30 livros, entre romances, narrativas psicografadas e “obras de sua própria concepção”, como costuma dizer. É figura constante em listas de livros mais vendidos – chegou ao recorde de emplacar quatro títulos simultaneamente –, tem um programa de aconselhamento espiritual no rádio, assina colunas em revistas e é proprietária de um império, a Vida & Consciência, que reúne gráfica, editora, webescola, cursos e loja virtual. No início da década, o conglomerado tinha faturamento estimado em R$ 11 milhões – hoje, não divulga mais seus números. A Vida & Consciência é a maior editora de livros espíritas do país e publica autores como Mônica de Castro e Marcelo Cezar. Os títulos lançados têm como objetivo “a divulgação da espiritualidade e seus valores éticos; o estudo científico e prático dos fenômenos da mediunidade; a intervenção dos espíritos e seu relacionamento com as pessoas encarnadas e as consequências que todos esses elementos representam no cotidiano.” Mas não há dúvidas de que são os livros de Zibia que impulsionam os números surpreendentes: mais de 10 milhões de exemplares já foram vendidos, conquistando um público de 50 milhões de leitores. As obras ganharam tradução e foram publicadas em Portugal, na Colômbia, na Espanha e no Japão. Títulos como Laços eternos e Ninguém é de ninguém foram adaptados para o teatro, levando as palavras da autora para um público ainda maior. Tamanho sucesso Zibia atribui não a si mesma, mas ao seu mentor: o espírito Lucius, que a acompanha desde a década de 1950, quando estreou com o romance O amor venceu. Em vidas passadas, Lucius teria feito parte do parlamento inglês e sido juiz de direito na França. Nas palavras da médium, ele é “um espírito amigo que tem muita facilidade de me transmitir o seu pensamento por telepatia. Talvez nem todas as histórias sejam suas, pois às vezes noto mudança de estilo. Mas é por meio dele que elas chegam”. No começo da carreira, Zibia sucumbia à vontade de Lucius a qualquer hora do dia ou da noite. Não havia rotina. Hoje, ela tem horário certo para receber as mensagens tão cheias de firulas e adjetivos que o espírito dita (exemplo: “A tarde ia em meio e o sol estava alto, penetrando alegre pelos reposteiros do gabinete povoando-o de luz e sombras, fazendo refulgir os metais dos candelabros ou esmaecer o colorido dos quadros de parede” – trecho de Laços eternos). “Atualmente psicografo três livros, um a cada dia da semana. Eu sento, coloco uma música suave, leio a última frase e os espíritos vão ditando. Aí, é só escrever. Pode-se dizer que sou uma secretária. Eu não sei o que vai acontecer na história, nem como vai acabar. Às vezes, penso que seguirá por um caminho e segue por outro”, escreveu em seu blog. A autora é um mero instrumento para a vontade de quem já passou desta vida para outra supostamente melhor. “No transe, fico consciente e posso parar de escrever se quiser, mas não escuto bater na porta, por exemplo. Fico literalmente dentro da história, vejo algumas cenas como se estivessem desfilando na minha frente à medida que vou ouvindo. Às vezes, sinto o cheiro do lugar e a emoção dos personagens.” A hora para a conexão com o outro mundo é marcada, mas não faz com que Zibia seja poupada de um grande esforço. “Os espíritos têm uma movimentação celular muito rápida. Eles têm que baixar, eu tenho que me elevar e, mesmo assim, é muito rápido. Eu preciso escrever rápido, e, se perder algo ditado, também é muito difícil de voltar.” Como ela faz para lidar tom tamanha velocidade? Usa o computador. “Sou da velha guarda da datilografia. Aos 14 anos, tirei diploma de datilógrafa. Então, escrever no computador agora é muito mais fácil e rápido. Inclusive porque o texto já sai pronto!” Quem pensaria que os espíritos fossem se beneficiar tanto da tecnologia... O começo O chamado foi o ponto de partida para uma vida dedicada ao espiritismo. Zibia e seu marido, Aldo, começaram a estudar a doutrina de Allan Kardec na Federação Espírita de São Paulo – lá ministrou, por 25 anos, cursos na Escola de Médiuns. Quando Aldo faleceu, o mergulho no mundo dos que já partiram se aprofundou. E foram os espíritos que “solicitaram a criação de um espaço editorial com a finalidade de divulgar a espiritualidade e seus valores”. Conselho específico demais, dizem os críticos. Mas vontade do além não se contesta, se satisfaz. E assim foi feito. Logo depois, ela recebeu outra indicação: “Compre uma gráfica e invista em divulgação”. Mais uma vez, desejo atendido. Assim foi criada a Vida & Consciência, negócio que também dá espaço para os filhos de Zibia, Luiz e Silvana. Ele se dedica aos conhecimentos da metafísica, enquanto ela busca ajudar crianças a lidarem melhor com seus medos e frustrações, “através do despertar da consciência”. Luiz também coordena um SPA urbano que oferece terapias alternativas e autoajuda. As críticas O sucesso que alcança com seus livros rende, além de dinheiro, controvérsia. Críticos acusam a autora de ter perdido a capacidade mediúnica e encaram o “materialismo” da médium com maus olhos. Afirmam que a autora deveria abrir mão dos direitos autorais de suas obras – ou seriam os direitos de um espírito? – para a caridade, seguindo o exemplo de outro blockbuster do gênero, Chico Xavier. Na internet, uma indignada Sonia M. O. Varasquim assina um texto intitulado Uma fraude chamada Zibia Gasparetto. “Com todo o respeito aos leitores da autora, é mais do que vidente (sic) que seus escritos são fraudulentos. Tive o desprazer de ler quase toda sua obra, buscando uma fagulha de veracidade em suas histórias, mas, infelizmente, não é preciso ter grandes conhecimentos da doutrina espírita para detectar que seus romances são utópicos. Encontrei algum fundamento em sua primeira psicografia, mas, a partir daí, o que se viu foi uma ambição sem medidas para emplacar um best-seller atrás do outro. É com muita tristeza que vemos dia após dia este tipo de coisa acontecer, gente sem o menor preparo, usando a fé alheia para engordar seus cofres, e o mais absurdo é que conseguem, vejam a própria Zibia, que tudo que escreve vira ouro. Infelizmente não temos nenhum órgão capacitado para fiscalizar, inibir e até mesmo punir este tipo de fraude”, desabafa. Paulo Henrique Wedderhoof, colaborador da revista Ser espírita, professor de teologia espírita na Falec (Faculdade Doutor Leocádio José Correia), de Curitiba, e membro da Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas já ouviu comentários desse tipo em relação à obra de Zibia Gasparetto. “O processo mediúnico é tão sutil que algumas pessoas não conseguem saber claramente se as ideias são suas ou de um espírito. Assim sendo, se a pessoa se afasta dos princípios espíritas, os bons espíritos deixarão de usá-la como veículo de disseminação das suas ideias. Por outro lado, se a pessoa tiver conteúdo pessoal, poderá continuar a produzir obras construtivas, sem que isso represente demérito perante a sua consciência. Na verdade, não nos cabe julgar”, analisa. “Quem poderá avaliar isso com toda certeza é a própria autora no momento do seu balanço pós-desencarne, pelo qual todos passamos na chamada autoavaliação junto a instrutores superiores. Fora isso há que se notar que o sucesso gera ciúmes e isto também é humano. Por isso é importante lembrar que a verdade e os méritos estão ligados à intenção do agente e não no julgamento dos observadores externos”, acrescenta. Wedderhoof busca os ensinamentos dos consagrados e, pelo visto, incontestáveis, Chico Xavier e Allan Kardec, além das palavras de Leocádio José Correia, Antonio Grimm e Marina Fidélis. “Nesses livros sempre encontrei grandes esclarecimentos espíritas. Sugiro também que a pessoa não leia só livros espíritas. É muito importante mesclar com livros sobre a história da filosofia, da ciência, das religiões e da história da civilização.” Mas Zibia não se intimida. “O que eu faço é subliteratura, para os intelectuais. Mas o público sabe melhor das coisas”, já disse em entrevista. Os números Os números desviam a alfinetada de Zibia do centro das atenções. Levantamento mais recente feito pela Câmara Brasileira do Livro, em 2008, aponta que o mercado de livros religiosos foi o sub-segmento que mais cresceu em faturamento (13,54%) e em número de exemplares (15,75%). “Isso significa R$ 321,2 milhões nas vendas de 50,2 milhões de exemplares, com preço médio de R$ 6,39 por exemplar”, afirma a CBL. Outro levantamento, de 2003, mostra que 6 milhões de exemplares espíritas são publicados ao ano, e que o mercado contava, na data, com mais de 200 editoras dedicadas ao assunto. “É difícil dizer o que sai mais, porque tudo dela vende muito rápido”, diz Jairo Roberto da Silva, 55, dono do sebo Multiverso, em Pinheiros, São Paulo. “Hoje mesmo atendi uma moça que queria vários livros dela. Os de Chico Xavier e os de Allan Kardec também são muito procurados”, afirma, acrescentando Mônica Castro à lista. A curiosidade dos clientes pelo espiritismo, no entanto, não aguça a do próprio. “Eu não gosto desse tipo de livro. Até já trabalhei com uma senhora que era muito voltada ao espiritismo, mas como minha esposa é testemunha de Jeová, fica difícil. Não dá para ela ler, senão fica doida. Então prefiro livros de autoajuda, a Bíblia”, diz. Mas é nos leitores fiéis que Zibia encontra sua melhor defesa. “Acho que cada um tem direito de ter sua opinião. Os livros sempre me ajudaram muito. Então, se ela lucra ou não com isso, não me importa. O que importa pra mim é a ajuda que ela me dá e, com certeza, enquanto ela escrever continuarei comprando as obras”, afirma a microempresária Gláucia Ferreira, 31. Os leitores Gláucia ouviu falar da autora quando começou a frequentar reuniões espíritas. Desde então, é assídua na biblioteca do centro e busca seguir os ensinamentos escritos em livros como Sem medo de viver, Esmeralda, Vencendo o passado, Tudo tem seu preço, Pelas portas do coração, Quando chega a hora e A verdade de cada um. “Os livros de Zibia me ajudam muito, pois parece que surgem sempre no momento certo, em que mais preciso. Como não acredito que nada é por acaso, sempre acabo levando algo especial das leituras para a minha vida”, afirma. A microempresária endossa o coro de leitores que buscam nas leituras dos livros de Zibia Gaspareto respostas para acalmar a mente e o coração, alternativas para seguir em frente depois de perdas ou mudanças bruscas de vida. E foi graças a Ninguém é de ninguém, um dos maiores sucessos da autora, que a educadora social Cynthia Clause, 29, conseguiu encontrar a tal paz de espírito. Ela estava próxima dos 20 anos e se relacionava há cinco anos com um rapaz. “Tínhamos um amor imaturo. Eu colocava nele um pouco da minha responsabilidade de ser feliz. Chegamos a acabar algumas vezes, e o livro me ajudou a me entender melhor”, lembra. Ela conta uma história de como as palavras psicografadas por Zibia tiveram influência direta em sua vida. “Na terceira vez que eu e ele acabamos, ele voltou para sua cidade natal. Eu segui em frente, aproveitei algumas coisas que ainda não tinha feito porque namorava, como passar um Carnaval solteira em Olinda. O fato é que acabamos, senti muito, mas logo fui fazer um novo curso, entrei na academia para distrair a mente e logo estava perdidamente apaixonada por outra pessoa. Namoramos um tempo, mas não seguimos adiante. Seis meses depois, quem ressurge das cinzas? Meu maridinho. Rodamos, rodamos e acabamos voltando”, relembra, como uma protagonista de um romance cheio de idas e vindas, que parecem funcionar como uma grande provação. “Engraçada a vida. Talvez, se eu tivesse sempre pensando nele, não teria sido feliz e talvez nem juntos estivéssemos hoje. Aprendi mesmo que ninguém é de ninguém. Estamos juntos hoje, e o fato de estarmos ou não juntos amanhã não importa. O importante é fechar o ciclo na hora certa para não criar traumas”, aconselha Cynthia, grata até hoje por levar para a prática os ensinamentos de Zibia, Lucius e todos aqueles que já passaram desta para melhor, mas que continuam tendo um trabalho enorme para ditar conselhos extensos e detalhados para as vidas dos que aqui permanecem.