Ela passou parte da infância, dos 9 aos 13 anos, no Jockey Club do Tarumã, em Curitiba. Tanto seu avô quanto seu pai, Harold Collin e Harold Collin Jr., eram turfistas, ambos proprietários de cavalos tríplice-coroados. Os animais se chamavam Argentina e Roxinho, só que, mesmo vitoriosos, ou justamente por isso, não apaixonavam a menina. Ela preferia os abstraídos. Aqueles que, na largada, deixavam suas baias andando, lerdos e absortos, para a aflição dos jóqueis. Caminhavam vadiamente até o cercado que separava a pista da arquibancada, admirados talvez das próprias pegadas na areia. Dali, lançavam um olhar estarrecido à multidão, ao céu, ao pódio, desafiando aquela ordem que, desde sempre, obriga as cavalgaduras a competir. Cavalos inesquecíveis. Tanto que, hoje, ao falar de sua carreira como escritora, é a eles que a menina recorre, numa metáfora não de descaso ou preguiça, mas de resistência.
Luci Collin largou, mas sem disparar, já faz algum tempo, em 1984, com o livro de poesia Estarrecer. Desde então, vem correndo por fora. Quase escondida, apesar da estreia paradoxalmente impactante. Ao menos para os padrões da província onde ainda vive. Luci tinha apenas 19 anos, e não queria que sua primeira publicação passasse em branco. Assim, traçou uma estratégia ousada de divulgação. Visitou, de casa em casa, toda a “Velhíssima Guarda” da literatura curitibana. A começar pela lendária poeta Helena Kolody (1912-2004), ex-professora de sua madrinha de batismo, que a recebeu em seu apartamento no Centro, na praça Rui Barbosa.
Dona Helena captou nos versos de Luci certo vigor filosófico: “A força do ser é estar sendo. Estarrecer”, escreveu à mão, numa carta à jovem colega, com letra antiga e amorosa. A partir daí, influente, passou a indicá-la a outros autores locais, mais ou menos da sua geração. E um foi chamando outro. Aramis Millarch, Carmen Carneiro, Vera Vargas, Eduardo Virmond, Flora Munhoz da Rocha. Erasmo Pilotto, que lhe emprestou o primeiro volume de Jorge de Lima. E seu irmão, Valfrido Pilotto, que, num artigo na Gazeta do Povo, saudou a chegada de Luci, chamando-a de “poetisa dos albores do novo milênio”. O objetivo da estreante era colher recomendações e reuni-las no que resolveu chamar de Jornal do Estarrecer, uma inusitada peça de marketing literário, incomum na Curitiba dos anos 1980, e que veio a cumprir perfeitamente o seu papel. Não demorou para a fama da nova escritora se espalhar pela cidade, provocando em toda a cena o desejo de conhecê-la — e também referendá-la.
“A luta é esta”
“Curitiba era uma teteia”, conta Luci. Pequena para tantos escritores, grande demais para um leitorado tão escasso. “Lar, província, cárcere”, como já resumiu Dalton Trevisan. Mas tudo se acelerava, tudo era emoção. Pouco antes de estrear, aos 15 anos, Luci tinha visto o primeiro escritor de sua vida, na Biblioteca Pública do Paraná. Era Domingos Pellegrini, e ela o achou lindo. Todo mundo era lindo, e tudo, novidade. Luci ficava no ponto de ônibus em frente à velha Papelaria Requião, na Muricy, só para ver Paulo Leminski vir descendo a rua, ornado de seus discípulos, a caminho do Colégio Barddal, onde dava aula. De Leminski, aliás, também conseguiu um depoimento. Não foi tão fácil, mas conseguiu. Ele escreveu: “Estou admirado com o nível técnico dessa jovem poeta, nesta geração que pensa que qualquer coisa já é poesia”.
Outros nomes nacionais deram seu testemunho por correspondência. Dias Gomes, Henfil, Ana Maria Machado. Com João Antônio a coisa fluiu, e Luci se correspondeu mais longamente. Ela lembra, em especial, uma carta em que o autor de Malagueta, perus e bacanaço, discorrendo sobre o ofício dos escritores, decretava: “A luta é esta. Ou nenhuma”.
Luci anotou a dica. A luta, ou a corrida, era aquela. Estarrecer, portanto, foi lançado com estardalhaço no Solar do Barão, um tradicional complexo cultural curitibano. Vendeu, de cara, 100 exemplares, um sucesso. No local, artistas plásticos como Solda e Rogério Dias, tio de Luci, produziam telas em tempo real. Quem foi à festa ganhou, deles, obras exclusivas. Também ouviu música de câmara executada ao vivo pelos amigos da autora. E, em vez do famoso vinho de vernissage, proibido em lugares públicos, distribuíram-se maçãs. Só que, na Curitiba de 1984, ninguém tinha coragem de morder maçãs na frente dos outros.
“Sólida demais”
De lá para cá, seguiram-se 18 livros. São 33 anos de uma carreira quase marginal, mas que vem ganhando cada vez mais visibilidade. Embora nada tenha realmente mudado em sua escrita, sustenta Luci. O que mudou foram os tempos. Ela permanece a de sempre: experimental, solitária, transgressora. Provocadora, irônica. Em 1997, inclusive, o escritor Bernardo Ajzenberg já havia matado essa charada ao resenhar seu primeiro conjunto de contos, Lição invisível, para a Folha de S.Paulo. Segundo ele, o que definia a prosa de Luci era uma mistura muito poderosa entre “dor e bom humor”. Para o escritor e tradutor Caetano Galindo, professor e colega de Luci no curso de Letras da UFPR, e hoje primeiro leitor de seus originais, a escritora “nasceu pronta”. “Ela tem uma mão pra lidar com vozes, pra escrever pessoas, criar indivíduos verossímeis e com o tipo de sabor de real oralidade brasileira que sempre me encanta”, diz Galindo. “E tem esse amor pela invenção, não necessariamente a invenção testosteronizadamente egoica, que grita por atenção, mas uma coisa sutil, inventiva até nos modos de ser inventiva. E sólida demais.”
Heavy Metal
Extremamente curitibana, Luci foi criada no Bairro do São Francisco, e seus antepassados estão na cidade desde que ela se chamava Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. Atualmente, ela mora na Rua Treze de Maio. Nasceu em 1964, na Duque de Caxias, 252. Passou a meninice na Inácio Lustosa, 878. A família da mãe, porém, a professora Maria José Dias Collin, veio do interior, de Jacarezinho; e os Collin eram originalmente holandeses, com passagens por Vila Nova de Famalicão, em Portugal, e pelo Recife, antes de adotarem o sul do Brasil.
A única entre os Collin a não abraçar a advocacia. Seus irmãos são advogados. Seus filhos, Victor, de 24 anos, ex-bailarino de street dance, e César, de 21, estão começando no ramo. Ela nunca cogitou a hipótese. Quando pôde escolher, escolheu a música. Primeiro estudou piano e performance na Belas Artes. Mas uma tendinite no braço direito atrapalhou sua relação com o instrumento. Foi cursar também Letras, sem jamais abandonar a música. Trocou o piano pela percussão. Tornou-se até baterista.
Houve um tempo em que sua rotina era tocar o Bolero, de Ravel, em cerimônias de casamento. A peça estava na moda, por conta do filme Retratos da vida, de Claude Lelouch, de 1981. Quantas noivas curitibanas não disseram o sim ao som das baquetadas de Luci em sua caixa-clara? No Conservatório, seu apelido era Heavy Metal. Um dia, saiu de uma missa na Capela do Tribunal, no Centro Cívico, foi à Igreja Ortodoxa Antioquina São Jorge, e depois a uma convenção de empresárias, e a um casório na Igreja de Santa Teresinha. Em todo lugar a que ia, tocava o Bolero. Chegou em casa à noite, organizou numa pilha o dinheirinho arrecadado. Pensou bem. E desistiu daquilo tudo.
Inescritora
Foi ser escritora. Ou “inescritora”, como se autodefiniu, certa vez, num momento bem-humorado de desafogo. Criou o termo depois que o escritor Paulo Venturelli, ao elogiar uma de suas obras numa resenha de jornal, recebeu reprimendas de uma leitora insatisfeita. Ela dizia que o livro de Luci era, na verdade, horrível. Não tinha personagens, não tinha enredo, não tinha nada. Luci, então, pensou: “Sendo assim, não escrevendo nada, não escrevo. Inescrevo”.
Ela conta e ri. Dor e bom humor. Ri porque não se ressente, segura do que faz. E o escritor Nelson de Oliveira, que em 2003 a incluiu na famosa antologia Geração 90: os transgressores, não vê mesmo motivo para insegurança. “O que mais me agrada na ficção da Luci é o uso inquietante dos procedimentos das vanguardas: fragmentação do discurso, colagem de referências, subversão do tempo e do espaço, fluxo de consciência, citações irônicas, polifonia”, argumenta. E conclui: “Quando o Brasil for um país sério, sua obra maravilhosa será reconhecida”.
Mas Luci, já vimos, corre por fora. Passou anos evitando o cerne dos acontecimentos literários. Em 1992, ainda casada com o flautista e psiquiatra Marcelo Lavalle, foi morar numa chácara em Lamenha Pequena, divisa com Almirante Tamandaré, onde passou 15 anos. Trabalhava, e ainda trabalha, no centro de Curitiba, como professora, cumprindo 40 horas semanais. Mas vivia mesmo no mato, na Chácara São Francisco (o santo, esclarece, é seu ídolo).
A São Francisco é um terreno de sete mil metros quadrados, com lago, carpas, cavalos, cachorros, patos. Piscina e quadra de futebol. Lá, Luci cultivava e vendia orgânicos para restaurantes da cidade. Alface, lentilha, alcachofra. Garante que manja tudo de compostagem. É vegetariana desde os 16.
Pouco antes de se mudar para a chácara, conheceu a obra do poeta americano Gary Snyder, hoje com 87 anos, vencedor do Pulitzer, zen-budista da escola Soto Zen e ativista ambiental. Certa tarde, em seu apartamento, Luci encontrou num livro, por acaso, o poema Not leaving the house, de Snyder, e que mais tarde ela mesma traduziria, com o título de Não sair de casa. O trecho final dizia: “Não sair de casa./ Do amanhecer até tarde da noite/ construindo um novo mundo de nós mesmos/ ao redor desta vida”.
E aí tudo mudou. Aquilo a emocionou drasticamente. Estudando o trabalho do poeta, Luci aproximou-se dele. Iniciaram uma amizade epistolar que ainda vigora e tornou-se presencial, familiar. Snyder, inclusive, introduziu Luci no zen-budismo. “Deixar vir, deixar ir”, é assim que ela vive. Pratica o zazen, a meditação sentada, a partir do conceito do shikantaza, em que nos sentamos, Luci explica, “como se estivéssemos com os cabelos em chamas”.
“Momentos de comunhão”
De origem católica, Luci sempre teve uma queda pelos ritos, pelo rigor dos dogmas. Menina, amava a liturgia cristã, a força dos cultos e das celebrações. Para ela, sua ligação com a música, e mais especificamente com as orquestras, vem daí, dessa “coisa primitiva” que há na religiosidade. A música, aliás, ainda é sua praia natal. Sua ideia de literatura, de corte e ritmo na escrita, ainda está muito ligada à ideia da frase musical, da semifrase, do fragmento. E também à montagem e ao flash. Ou ao desvio, como sugere o escritor Luiz Ruffato, que também a escalou para uma antologia importante, 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, de 2004: “Há autores que escolhem transitar pela estrada segura da literatura. É menos arriscado, e por isso mais engarrafado. E há autores que preferem o desafio de percorrer trilhas e desvios — a possibilidade de chegar a lugar algum é maior, mas os que lá chegam colhem frutos muito mais duradouros. É o caso da Luci Collin”.
Correndo por fora ou não, Luci chegou a esse lugar de colheita. Ou melhor, a vários desses lugares. Um deles, por exemplo, é o Butiatuvinha, bairro de Curitiba, afastado do Centro. Convidada pelo ator e mediador de leitura Kenni Rogers para participar da 1ª Mostra Paraná de Literatura, na periferia da cidade, a autora acabou lançando por lá o seu livro de contos mais recente, A peça intocada. Quarenta exemplares foram distribuídos e assinados na rua, à noite, a qualquer um que se interessasse. “Lançar o livro num local de chacinas e desaparecimento de pessoas foi indescritível”, conta Luci. “Estar com aquela gente tão receptiva, com os rappers, os músicos locais, numa grande festa mesmo, em que eles receberam meus contos de um modo muito amoroso, fortaleceu meu vínculo com a escrita, com a importância de se continuar dizendo coisas, contando histórias, promovendo — pela palavra — momentos de comunhão.”
O percurso de Luci Collin, do seu primeiro lançamento ao mais recente, do Solar do Barão ao Butiatuvinha, talvez revele não apenas o quanto Curitiba mudou desde 1984. Mas também o quanto mudaram o Brasil e as intenções e necessidades de nossa própria literatura.