Pergunto a uma das principais vozes da literatura de terror na Argentina o que mais lhe dá medo em 2017. “Mauricio Macri”, responde prontamente Mariana Enriquez, quase derrubando sua xícara de café. “Se bem que o presidente de vocês é de um temor literal, não.”
Em uma cafeteria do Bairro de Caballito, centro exato do mapa portenho, a autora fala sobre política, violência, a porosidade do gênero terror e a construção literária de uma Buenos Aires imunda e perversa, avessa à versão europeia idealizada for export.
Desde que estreou na ficção aos 21 anos, com o romance Bajar es lo peor, a escritora vem se inscrevendo em uma tradição moderna de terror, que reinterpreta os arquétipos clássicos do gênero segundo a realidade local, transmutando em ficção as fobias e os preconceitos da sociedade em que vive. “O que é uma casa assombrada na Argentina? Uma casa onde desaparecem pessoas”, responde, referindo-se aos 30 mil desaparecidos da última ditadura cívico-militar. Assim como o norte-americano Stephen King falava de bullying e massacre escolar em Carrie, a estranha, a argentina trata de terrorismo de estado, da crise, da violência policial que vitimiza os pobres, dos feminicídios. Qualquer semelhança com a realidade brasileira não é mera coincidência.
Mariana Enriquez nasceu em 1973 no subúrbio de Buenos Aires, em Lanús, a apenas 15 quilômetros ao sul da capital, cruzando a Ponte Alsina. O município, junto com outros 30, forma o chamado conurbano bonaerense, a terceira maior aglomeração urbana da América Latina, com cerca de 15 milhões de pessoas. “Lanús tem um nível de marginalidade antigo que é diferente da capital. Foi um importante polo industrial nos anos 1960 e 1970, mas se desindustrializou durante a ditadura. Eram todos bairros fabris habitados por operários de classe média, que foram perdendo sua identidade. Os imóveis vazios, a fábrica abandonada da Campomar, criam esse cenário de páramo que dá medo. Um medo misturado à tristeza. Desde então, as pessoas vêm a Buenos Aires para trabalhar porque o município nunca mais se recompôs economicamente”, explica a escritora, que cursou Comunicação Social em La Plata e só se estabeleceu na capital portenha depois de adulta. Ainda está “descobrindo” a cidade. Talvez o fato de não ter uma relação afetiva com ela a torne uma observadora menos romântica.
Entre os oito livros que publicou estão Como desaparecer completamente, Los peligros de fumar en la cama, Éste es el mar e As coisas que perdemos no fogo, único editado no Brasil, premiado internacionalmente e traduzido para 20 idiomas.
O OUTRO COMO FRONTEIRA
Nos 12 contos do livro lançado pela Intrínseca, o terror emerge como um estado permanente de alerta, próprio dos moradores das metrópoles afundados no mal-estar social das misérias cotidianas. Há uma fissura entre o narrador e o narrado, uma espécie de fronteira invisível entre o eu e o outro. Relatos como O menino sujo, O quintal do vizinho e Sob a água negra são exemplos de protagonistas bem-intencionadas, lutando para expiar sua culpa de classe, mas que ocultam, no gesto de ajudar o outro, o principal motivo de sua empatia: o medo de se tornar este outro.
“O argentino é solidário à pobreza, mas no fundo tem muitos preconceitos, usa termos como ‘negros de merda’ ou ‘planeros’ (pessoas que recebem planos sociais do governo, espécie de Bolsa-Família). Interessa-me narrar do ponto de vista do burguês assustado, que pode ser fascista, mas também um progressista empático, assustado de outra maneira. Essa ideia burguesa da superação individual, que as protagonistas desses contos trasladam para um tipo de caridade, claramente não funciona”, opina.
TRÂNSITO E IMOBILIDADE
O livro está atravessado por uma série de deslocamentos, sejam eles espaciais — por territórios sujos e esquecidos, passando por pontes sobre rios poluídos, rodovias vazias e trens apinhados de gente onde há sempre alguém estendendo uma mão “ensebada” para pedir esmola — ou temporais: da morbidez dos crimes do Baixinho Orelhudo no início do século XX, à sordidez dos crimes da ditadura cívico-militar nos anos 1970, da hiperinflação dos tempos de Raul Alfonsín aos escândalos do peso indexado ao dólar na era Menem (narradas em Os anos intoxicados), até chegar aos feminicídios do século XXI, com os gritos de Nem uma a menos ecoando do conto homônimo, um relato de ficção científica que encerra o livro magistralmente.
Apesar do trânsito espaçotemporal constante, há também uma sensação de imobilidade e encerro que asfixia o leitor do início ao fim do livro. Não faltam personagens presos em cativeiros e casas abandonadas, em um carro enguiçado no meio da estrada ou em sua própria loucura, dentro de um quarto cujo único contato com o mundo é via computador — no conto Verde vermelho alaranjado, Enriquez remete aos hikikomori japoneses para falar dos horrores da deep web e da internet como um lugar de fantasmas. “Estou dentro da minha própria mente, estou trancada na casa errada”, diz uma das epígrafes, de Anne Sexton. A outra é de Emily Brontë em O morro dos ventos uivantes: “Quisera ser de novo uma menina, meio selvagem e durona, e livre”.
“CHEGA DE PROTAGONIZAREM TUDO”
Praticamente todos os contos de As coisas que perdemos no fogo têm narradoras, e em quase todos os personagens masculinos são irrelevantes. “Destacar as mulheres com seus problemas e seus mundos era uma forma de tirar o protagonismo do homem. Nestas histórias eles não são nada, nem vilões. Eu não queria dar a eles outro protagonismo, de alguém que leva a narrativa adiante por heroísmo ou violência. Não pretendia castigá-los ou dizer que são maus, apenas dizer ‘chega de protagonizarem tudo’”.
Mariana conta que foi questionada por alguns escritores e leitores homens. “Por que nos fez passar por idiotas?”, perguntavam. “Nas artes ou na realidade, quase todos os vilões são homens, dos ditadores aos monstros e assassinos seriais. É engraçado que este protagonismo não lhes incomode, mas ser um marido incapaz de satisfazer sua mulher — o que ocorre em pelo menos 50% dos casos —, isso, sim, lhes incomoda”, reflete a autora, que diz não se interessar pelo que chama de “feminismo Beyoncé”. “É fácil ser feminista a partir deste lugar de poder, que, aliás, é bastante masculino. A Mulher Maravilha, por exemplo, é um soldado. Eu não queria reproduzir este modelo que pensa a mulher como uma deusa satisfeita sexual, financeira e filosoficamente (porque ninguém o é, nem a Beyoncé), mas, sim, falar das questões femininas de uma forma mais complexa e problematizar o patriarcado”, defende.
Mariana também problematiza as relações entre os casais. Ali, onde tudo é íntimo — a casa, o casamento, o bairro de classe média confortável, o próprio corpo —, é onde o terror pode estar sendo gestado. Essas esferas de segurança vão sendo dinamitadas uma a uma a cada conto, como quem diz: você não estará seguro em lugar nenhum.
O “BOM IMIGRANTE”
Recordar e narrar, dois verbos tão caros aos argentinos, estão presentes em muitos destes contos. Em Pablo clavó un clavito: uma evocação do Baixinho Orelhudo, Mariana reconta na voz de um guia turístico a história real de Cayetano Santos Godino, assassino em série que matava crianças com requintada crueldade na Buenos Aires das primeiras décadas do século XX. Já em Teia de aranha, aparecem os relatos insólitos de premonições e magia negra do norte argentino (o tema já aparecia no conto O poço, de Los peligros de fumar en la cama, publicado no Brasil em e-book pela e-galáxia).
“Quando criança, eu lia mitos gregos e ouvia minha avó materna, que era de Corrientes, contar sobre santos populares como San La Muerte e Gauchito Gil. A migração do norte do país à região metropolitana de Buenos Aires mudou sua paisagem, com murais e oferendas a essas figuras. A maioria dos portenhos não entende isso e tem medo, um medo misturado à inquietude do outro que os traz: o imigrante. Não o imigrante europeu, mas o paraguaio, o correntino.”
Pablito clavó un clavito também rompe com o ideal portenho do “bom imigrante”, já que o Baixinho Orelhudo era, na verdade, italiano. “É uma provocação a essa ideia racista a favor dos imigrantes de pele clara. Eles eram paupérrimos, mas ‘pelo menos’ eram brancos”, ironiza. Segundo ela, há 100 anos os italianos tampouco eram bem-vistos pelos argentinos, mas logo o termo Tano (de Napolitano) foi ressignificado e hoje se refere ao estrangeiro que emigrou à Argentina para trabalhar. “Como se o boliviano que chega aqui hoje não fizesse o mesmo”, provoca.
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Mariana Enriquez coleciona cemitérios. Seu livro Alguien que camina sobre tu tumba (2014) reúne crônicas de suas visitas por vários ao redor do mundo. Mas não os pinta como cenários de terror. Pelo contrário.
“Para as pessoas da minha geração, que cresceram no clima mórbido da pós-ditadura lendo notícias explícitas sobre torturas, sequestros e crianças apropriadas, o que dá medo não é a tumba, mas a falta dela, os corpos não identificados jogados em valas comuns. Um cemitério onde há mortos com nomes e datas é um lugar que me tranquiliza”, afirma a autora, que aos 18 anos foi marcada pelo sequestro de um colega do curso de jornalismo. Vítima de terrorismo de estado, Miguel Bru continua desaparecido. “Narrativamente, o fenômeno de um corpo desaparecer é de uma sofisticação literal do horror, porque criam-se fantasmas sociais. A ditadura argentina é sinistra.”
Em 2017, além de Macri, Temer e dos medos pessoais ou coletivos que se parecem aos de todo mundo, Mariana diz temer o processo atual de uma sociedade cada vez mais conservadora. Lembra com repugnância a destituição de Dilma Rousseff transmitida pela TV. “Impressionaram-me os discursos de ódio, a desconexão e falta de empatia. Alguém dedicar seu voto ao homem que a torturou é maligno. Para mim, está aí o material de horror com que devemos trabalhar”.
UM ANTIGUIA PORTENHO
Perder-se sozinho pelas ruas sujas de Constitución em uma noite de apagão, passar por debaixo dos viadutos da autopista desviando de garrafas quebradas e oferendas para San La Muerte, contemplar as águas negras do Riachuelo poluído e avançar subúrbio adentro. Um guia para conhecer a Buenos Aires hostil de Mariana Enriquez, que não aparece nos cartões-postais. As imagens são do fotógrafo Elisandro Dalcin.
1. EX-ESMA
Antiga Escola Superior de Mecânica da Armada, a ESMA foi o mais emblemático centro de detenção, tortura e extermínio da ditadura cívico-militar argentina. “Houve outros, mas este me inquieta particularmente porque fica em uma área rica e valorizada da cidade, não em um lugar distante e ermo. Era dali que saíam os aviões que lançavam os corpos no Rio da Prata”, lembra Mariana Enriquez. Entre 1976 e 1983, cinco mil pessoas passaram pela ESMA. Pouquíssimas sobreviveram. “A ESMA tinha um componente de cinismo muito grande, que tornava ainda pior o que fizeram ali, como se não levassem a sério o extermínio.” Atualmente, o prédio no Bairro de Nuñez sedia o Espaço Memória e Direitos Humanos. “Uma vez participei ali de um bate-papo e senti um frio de outro mundo. O motivo real é que os militares destruíram a caldeira do prédio por vandalismo, mas a sensação era de estar em uma cripta. É um lugar que tentaram recuperar como museu e centro cultural, mas não sei se é recuperável.”
2. RIACHUELO
O Rio Matanza começa no oeste de Buenos Aires, próximo ao Aeroporto de Ezeiza, e tem sua foz no Rio da Prata, no Bairro de La Boca, onde se chama Riachuelo. “Durante muito tempo as indústrias da carne e do couro da região despejavam ali seus resíduos, sem qualquer controle, e hoje é um rio completamente contaminado por metais pesados e lixo tóxico. O Riachuelo marca o limite sul entre a capital e municípios como Avellaneda, Lonas de Zamora e Lanús. Também por isso me interessa simbolicamente, como zona de fronteira”, diz Mariana, que ambientou ali seu conto Sob a água negra — inspirado em um crime real com elementos fantásticos à Lovecraft: é como se a contaminação do Riachuelo ocultasse os deuses que habitavam as profundezas daquelas águas turvas (“não fica claro se para protegê-los ou para se proteger deles”), mas, ao jogarem ali uma pessoa, o rio desperta. “O que me perturba em relação ao Riachuelo é que poderia ser um passeio como o Rio Sena, mas é um lixo, e isso tem a ver tanto com a corrupção política quanto com o descaso da população.”
3. ANTIGO PRESÍDIO DE CASEROS
“Embora não apareça nos meus contos, é um lugar demoníaco que caracteriza bem a geografia de abandono do sul da cidade. Parque Patrícios como um todo é um bairro estranho, ali também está o manicômio Borda”, cita Mariana (onde, aliás, a verdadeira Hilda Furacão viveu seus últimos dias esquecida de tudo e por todos). Inaugurado em 1979 pelo ditador Jorge Videla, o presídio ficou famoso pela condição desumana de seus detentos e por seus violentos motins. Foi demolido, mas seus arredores viraram ponto de consumo e tráfico de drogas. No mesmo terreno, ergue-se a Casa de Correção de Menores, um edifício histórico de 1870 com paredes descascadas, tomadas por vegetação e em estado deplorável.
4. AUTOPISTA 25 DE MAIO
“Pontes e viadutos urbanos são, em geral, lugares sinistros, mas os da Autopista 25 de Maio têm um elemento ainda mais funesto, porque foram construídos durante a ditadura e sem o consentimento das pessoas, que tiveram suas casas derrubadas. Não se negociou, foi uma ordem. A autopista que passa por cima dos bairros do sul, como San Telmo, Barracas e Constitución, é uma espécie de ferida urbana”, diz. Para agravar ainda mais o cenário: durante as escavações da obra, no início dos anos 1980, foram encontrados ossadas e vestígios do Club Atlético, outro centro de detenção clandestino. “Está tudo relacionado.”
5. CONSTITUCIÓN
Antes da epidemia de febre amarela que matou 10% da população portenha em 1871, Constitución era o bairro dos ricos. Ao fugirem para o norte da cidade, por causa da doença, deixam suas mansões para trás. “Muitos destes imóveis se encontram em uma situação imobiliária confusa, por disputas entre herdeiros, e é comum ver janelas tapadas com tijolos para evitar ocupações “. O conto O menino sujo descreve bem esse cenário das imediações da Praça Garay. “Eu quis nomear o bairro para que ele fosse um personagem, pois o que acontece ali não poderia acontecer em nenhum outro lugar. Uma parte do sul da cidade está gentrificada, mas Constitución ainda não, talvez por causa de sua estação de trem — no mundo todo o entorno de estações é sempre medonho. É um bairro intenso e com um passado denso, que foi abandonado pela morte”, destaca a escritora, que o percorre diariamente para chegar à sede do jornal Página 12, onde é subeditora do suplemento cultural Radar. No verão, quando são frequentes os cortes de luz, é um dos bairros mais afetados. “Constitución à noite é heavy”, garante.