Um escritor de origem russa – e obra escrita em inglês impecável – faleceu há 40 anos, encerrando uma misteriosa vida que nem o meio-irmão conseguiu decifrar (apesar da obsessão por ele). Seu nome: Sebastian Knight.
Um escritor de origem russa – e obra escrita em inglês impecável – inventou esse “Sebastian Knight”, assim como criou aquela menina de (adorável) carne literária chamada “Lolita”, e também deu notável ossatura ao poeta “John Francis Shade”, além de “Charles Kimbote” e outros fantasmas saídos do seu caldeirão de mestre e mago, escritor de escritores, pertencente à linhagem da ficção do simulacro que veio a oferecer as matrizes da ficção que hoje admiramos em Sebald, Bolaño, Banville et altri.
Se já existiu um bruxo literário, esse bruxo não foi o argentino Borges, mas um russo filho da velha aristocracia de São Petersburgo. Seu nome: Vladimir Nabokov, que faleceu há exatos 40 anos, no dia 2 de julho de 1977, em Montreux, na Suíça.
“CHAPELEIRO MALUCO”?
Com o respeito que nos merece Lewis Carroll, é possível pensar numa – refinada – fantasia meio ao gosto de um “chapeleiro maluco” que fosse metodicamente empenhado em criar obras artísticas (com uma moderna medida flaubertiana) ao tentar descrever a obra de Nabokov.
Claro, não é bastante e nem sequer, talvez, um bom “acostamento” para os que tenham a visão de Alice nos limites de toda a insuficiência do que já se escreveu sobre Carroll. O caso do autor de A verdadeira vida de Sebastian Knight ultrapassa um tanto as intenções dezenovescas da menina no país das – sombrias – maravilhas e leva o disfarce, a sombra, a carapuça dos seus personagens para as nossas cabeças, ainda hoje, com a esquisita exatidão de um enxadrista apaixonado pelos mais difíceis problemas da vida como se fossem casos de xeques-mates literários logrados com a fina arrogância de quem conhecia tudo, literalmente tudo, em matéria de literatura. Seus alunos na Universidade de Cornell tiveram a oportunidade de perceber isso – e ainda hoje são deslumbrados pela lembrança de aulas que mudaram as suas vidas.
Não por acaso, o menino Vladimir era devotado à matemática e ao mimetismo das cores das borboletas dos verões da infância (essa infância campestre, nobre, que ele talvez evocasse, acima de tudo, num discurso de Prêmio Nobel que nunca precisou proferir).
Porque Nabokov foi uma daquelas ausências gritantes na lista dos premiados com o galardão internacional... e, no entanto, fica difícil vê-lo escolhido pela Academia Sueca. Na verdade, é impossível imaginá-lo recebido na fria Estocolmo pela quentura humana (demasiado humana) do seu maior êxito literário, consolidado no meio do escândalo de um romance que chegou a ser proibido como “pura pornografia”, em 1955.
LOLITA
O nome da personagem se incorporou ao mundo do erotismo pornô no qual chafurdamos hoje, e isso marcaria a sofisticada obra do autor de Fogo pálido, Ada, Coisas transparentes, Gargalhada na escuridão e outros títulos de primeira grandeza.
É preciso, porém, todo cuidado com esse rematado mestre do jogo do jogo. Sua gargalhada (na verdade inimaginável, em se tratando de autêntico aristocrata) ainda ressoa não só nas séries literárias, mas nas classes do professor de fina ironia de scholar capaz de definir “estilo e estrutura” como a essência de um livro: “Grandes ideias não passam de lixo, mas os detalhes contam a verdadeira história”.
Para se compreender melhor o romancista de The real life of Sebastian Knight é preciso retornar à Rússia pré-revolucionária – da qual o escritor nunca saiu, espiritualmente. Real Cavalheiro de São Francisco, o criador de Zembla (país imaginário parecido com a Rússia, é claro) viveu um daqueles dramas desapercebidos do século que passou rápido demais. Seu nascimento se deu em 22 de abril de 1889, quando ainda refulgia o ouro Fabergé no país real, prestes a desaparecer na nuvem do luxo czarista.
Filho do eminente advogado e político V. Dmitrievitch Nabokov, Vladimir foi educado nas línguas inglesa e francesa – antes de aprender o russo. A mãe, Elena Ivanovna, vinha de “uma família de aristocratas proprietários de terras na província de Kazan”, e sua imagem, clara como uma manhã de Vira, é um dos mais belos momentos da autobiografia intitulada Speak, memory (que, no Brasil, se tornaria A pessoa em questão, estramboticamente assim intitulada, na excelente tradução de Sergio Flaksman para a Companhia das Letras).
Ali e em A verdadeira vida de Sebastian Knight estão uma infância e uma adolescência passada entre os últimos fulgores do antigo regime, que o autor evoca com a paciência de quem examina as cores evanescentes de borboletas raras, capturadas em rede de grão fino. Os verões e os invernos, os Natais e as briskas, os retratos nas paredes e as salas abertas para as reuniões de família, as férias na Riviera e os trens lentos a caminho do desconhecido – seguindo para longe de uma Rússia perdida – brilham e doem também na alma do leitor que ouve a fala (e a farfalla) da memória de Knight-Nabokov.
Se a autobiografia é, necessariamente, sobre personagens reais (serão?), o romance que caminha para os 80 anos – primeiro real sucesso de Nabokov, datado de 1941 – é sobre um escritor imaginário, também filho da aristocracia russa. Knight, como o seu criador, teve que emigrar para a Inglaterra – para nunca mais voltar a ver a pátria dos confiscos e das propriedades perdidas. Visto, às vezes, como um reacionário que nunca se conformou com a perda de bens da família, é necessário apenas ler o Knight, ou a autobiografia, para se desfazer tal impressão redutora de um homem complexíssimo. A “perda” da sua lamentação artística não é tanto a da riqueza, a do conforto desfrutado por sobre a miséria dos mujiques – no escritor que sabia ser a estepe russa o campo das maiores injustiças –, mas aquela da revolução íntima, da pátria de uma tarde, da nação de ouro que se incrusta naquele “adeus a uma ideia”... como despedida permanente de tudo, que pressente no rosto da mãe: “Parecendo intuir que em poucos anos a parte tangível de seu mundo iria perecer, ela cultivava uma consciência extraordinária das várias marcas do tempo distribuídas por sua propriedade campestre. Preservava a memória do passado com o mesmo ardoroso fervor retrospectivo com que hoje rememoro a sua imagem e o meu passado. Assim, de certa forma, herdei um extraordinário simulacro – a beleza da propriedade intangível, os imóveis inexistentes –, e isto acabou se revelando uma esplêndida preparação para perdas posteriores”.
O JOGO DO JOGO
Mas não se pode esquecer que o escritor foi também sincero no seu gosto por charadas & truques: na mesma autobiografia, ele faz surgir o cenário dos escritores émigré – todos aqueles espíritos tangidos (para Berlim e Paris principalmente) pela tempestade bolchevista – e escreve, no penúltimo capítulo de Speak, memory:
“Minha paixão pela literatura de qualidade me pôs em contato com vários escritores russos no estrangeiro. Eu era jovem e me interessava muito mais pela literatura do que hoje” (ele escreve no final dos anos 1940, e está disfarçando o interesse, de obcecado, pela literatura, que manteve a vida inteira: chegou a “desmontar”, para muitos, a falácia da literatura de Borges, numa das suas aulas irônicas, em Cornell, para seus alunos quase todos admiradores das primeiras traduções do argentino que acabavam de aparecer nos EUA ).
Recordando a comunidade de escritores emigrados logo após o Outubro Vermelho – ou poucos anos depois –, ele passa a traçar alguns precisos retratos de Vladislav Khodassievitch, do grande Ivan Bunin (seu sketch do velho Cavalheiro às voltas, como uma múmia, com um longo cachecol, numa calçada parisiense, é impagável) e esboça rápidos perfis de Poplavski, Aldanov, Kuprin e Marina Tsvetaeva (“mulher de um agente duplo e poeta de gênio”) até chegar a V. Sirin, apenas para acrescentar de forma quase misteriosa: “Mas o escritor que mais me interessava era naturalmente Sirin. Pertencia à minha geração. Dos jovens escritores no exílio, era o mais solitário e o mais arrogante. A partir da publicação do seu primeiro romance em 1925 e ao longo dos 15 anos seguintes, até desaparecer tão prontamente quanto surgira, sua obra sempre despertava um interesse intenso e mórbido da parte dos críticos. Assim como os divulgadores marxistas da década de 1880 na velha Rússia teriam denunciado sua falta de interesse pela estrutura econômica da sociedade, os mistagogos da literatura no exílio deploravam sua falta de percepção religiosa e de preocupação moral...”
E Nabokov segue falando, em A pessoa em questão (?), da obra e da vida de Vladimir Sirin, que, de fato, publicou Mashenka (e mais dois ou três romances discutidos nos círculos dos refugiados), mas cujo verdadeiro nome – veio a se descobrir mais tarde – era... Vladimir Nabokov. Ou Sebastian Knight. Ou, aliás, John Francis Shade, ou, ainda, Charles Kimbote e todas as personas do escritor embutido nas muitas matrioscas da sua alma (para evocar, apropriadamente, o tradicional brinquedo russo de uma figura de boneca dentro de outra), como um livro dentro de um livro ou um espelho dentro de um armário de vidro.
Em tempo: exemplares (parisienses e berlinenses) de “V. Sirin” valem hoje uma fortuna, no mercado de livros raros. O nome também aparece – junto com o de Nabokov – em algumas enciclopédias literárias, no capítulo da ficção russa pré-revolucionária. E existe um gênero de borboleta, descoberta pelo autor de A verdadeira vida de Sebastian Knight, que está nos anais da entomologia, sob o nome de Lycaeides sublivens Nabokov.
Isto é, até que, algum dia, talvez venha a se descobrir uma borboleta chamada de Lycaeides sublivens Sirin...