(…)
– De quem???
– De Ingeborg Bachmann.
– Aaaaah claro que tenho! Voltem na segunda, que agora eu estou fechando a loja.
Il Museo del Louvre foi o primeiro lugar ao qual o menino me levou, quando cheguei a Roma. Misto de sebo maravilhoso, galeria de arte e arquivo fotográfico, o local é como se fosse um buraco negro bem no centro ultraturístico – ao entrar nele, você está em outra dimensão e, em meio a miniaturas de livros do século XIX e uma coleção de ex-votos, a salvo do vuco-vuco que é o centro da capital italiana. Depois de me explicar que foi ali que Francesca Woodman teve sua primeira exposição solo e que Giuseppe Casetti (dono do local e interlocutor da conversa acima) tinha tido um affair com a fotógrafa, nos anos 1970, o menino me disse que talvez ele poderia nos dar pistas sobre os anos de Bachmann em Roma. Segundo o menino, o sujeito é meio uma lenda viva, com anedotas e fotos pra mostrar de todo mundo interessante que viveu na cidade; e que nós tínhamos que começar nossa rota por lá.
…Como se eu estivesse interessada em Roma, como se eu estivesse interessada em anedotas. Eu estava interessada no menino.
*
Ingeborg Bachmann é uma poeta canceriana nascida na Áustria em 1926. Lançou dois livros de poesia – Die gestundete Zeit (1953) e Anrufung des Größen Bären (1956) – e depois parou, disse que não ia escrever poesia nunca mais, que ia se dedicar à prosa (de fato, teve uma produção intensa, escrevendo novelas, contos, romances, libretos etc., que lhe renderam grande prestígio). E à prosa se dedicou, mas não somente. Ia enfiando seus poemas na gaveta, sem mostrar a ninguém. E como não pensava em publicá-los, escrevia o que lhe desse na telha, se libertando dos esquemas formais tão presentes (e tão austeros) dos seus dois primeiros livros – então se não quisesse finalizá-los, e se não quisesse colocar vírgulas e se quisesse inventar palavras e se quisesse tocar o foda-se nas declinações do acusativo, assim ela faria; assim ela fez.
Daí vem o que depois veio a ser reunido pela Piper Verlag no volume Ich weiß keine bessere Welt, poemas póstumos que são mais que poemas não publicados, são sei lá, o coração dela. Esses textos se aproximam muito mais da vida interna de Bachmann do que a produção publicada oficialmente. Ela sofreu demais e, se nos livros de 1953 e 1956 podemos sentir uma alma em desajuste com o mundo, nos póstumos, Bachmann aceitou que essa alma dói, sim, mas que além disso tem um corpo que será sistematicamente violado – por guerras, por regimes totalitários, pelos homens, pelos nossos vícios, pelas doenças, pelas instituições.
Nos poemas póstumos, escritos entre 1962 e 1964, Bachmann tematiza principalmente a perda – a da voz criadora, a de um relacionamento (ou seja, “do mundo”, segundo ela mesma) e a do próprio ofício. Enfim, a perda de si mesma; esse perder-se de vista que é afinal toda ruptura.
Eu perco meus gritos
como uma pessoa perde
seu dinheiro, suas moedas,
seu coração, meus gritos mais
altos eu perco em
Roma, em todo lugar, em
Berlim, pelas ruas eu
efetivamente perco
meus gritos
(trecho do poema Eu perco meus gritos. No original: “Meine Schreie verlier ich”)
Escritos entre Zurique, Berlim e Roma, esses poemas surgiram também nesse eterno estado de descolamento/deslocamento – que ela fazia principalmente em busca de uma promessa do encontro com o amor absoluto (e ela apostou várias vezes nisso, sem nunca ganhar o jogo). Por amor, ela se mudou de cidade diversas vezes e as duas vezes em que saiu e voltou pra Itália foi por isso. Por ela, volto a Roma para seguir suas pistas em um projeto meu para traduzir sua obra. Por ela ou pelo boy, não sei direito.
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De fato, nosso primeiro contato com Giuseppe Casetti pareceu promissor. O entusiasmo com que ele respondeu à minha pergunta – “O senhor tem fotos de Ingeborg Bachmann?” – me fez acreditar que talvez eu conseguisse encaixar algumas das peças perdidas da minha empreitada romana: seguir os últimos traços de Bachmann na cidade onde ela, segundo a própria, “aprendeu a viver”.
E a peça perdida na minha cabeça era: aprendemos a viver onde quer seja, independentemente do local, por causa das pessoas que nos interessam... ou não? Seriam as pessoas, mais do que os pontos de chegada, que nos fazem mudar de lugar (e ficar)? Bachmann foi levada à Italia sempre por causa de um homem. O primeiro foi o maestro Hans Werner Henze. O segundo, Max Frisch, escritor que ela conheceu em 1958, três dias depois de aceitar o término do seu romance-físico-e-metafísico com Paul Celan. Bachmann era chegada em formar power couples, ao que parece. Foi também em Roma que a poeta morreu, em 1973, em circunstâncias até hoje não esclarecidas. Depois de adormecer com um cigarro aceso, seu quarto pegou fogo. Mas ela não morreu em decorrência das queimaduras, e, sim, do que parece ter sido uma mistura fatal entre os analgésicos prescritos pelos médicos, e os barbitúricos dos quais ela era dependente. Dizem que nos anos 1970 seu consumo chegava a 100 pílulas por dia. Se estivesse viva, Bachmann completaria, neste junho de 2017, 91 anos.
E eu, que tinha ido pra Roma por causa de um boy, não conseguia parar de me perguntar quando meu próprio quarto pegará fogo, quando cairá meu avião?, de tanto tentar, de tanto ir bater mundo afora atrás da promessa do amor absoluto; quando será que abrirei o elevador de um hotel barato e cairei no poço, porque minha ganância, “minha fúria e essa pressa de viver” (RIP, Belchior) foram maiores do que meu bom-senso?
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Em 1959, Bachmann deu uma conferência na Universidade de Frankfurt à qual deu o nome Literatura como utopia. Nela, a poeta trata das possibilidades da linguagem, usando o trabalho do escritor austríaco Robert Musil. O texto é precioso, mas a reação dos estudantes, na época, foi de desprezo: um dos alunos chegou a contestar a legitimidade do convite, perguntando como poderia uma universidade abrir espaço para uma aula tão “mística”? Na conferência, Bachmann trata de um “sonho de uma língua”, dizendo que “cada palavra, sintaxe, frase, pontuação, metáfora e símbolo preenchem apenas um pouco do nosso ‘sonho de expressão’, sem nunca consegui-lo totalmente”. Segundo sua biógrafa, Andrea Stoll, no entanto, outra grande utopia de Bachmann era o encontro com o “amor absoluto”: “A procura por ele marca a vida de Bachmann profundamente”. E mesmo assim ela nunca o alcançou, ainda que continuasse tentando, como se fosse esse seu projeto.
Aí está uma das maiores forças de sua produção. Para Bachmann, era impossível falar de uma dor sem que se a tenha vivido. Numa premonição assustadora em entrevista de 1971, Bachmann confronta o entrevistador: “Se você nunca queimou a mão, como pode falar do que é uma queimadura?”.
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E se tem uma pessoa coerente nas suas incoerências, era ela. Filha de um dos primeiros nazistas de Klagenfurt (o pai dela se aliou ao NSDAP já em 1932, quando o partido ainda era ilegal), anos depois ela se apaixonou por um dos maiores poetas do universo, Paul Celan, que era judeu romeno. Com Celan, ela trocou vasta correspondência, a quem dedicou poemas e teve poemas dedicados (Corona, aquela obra-prima que aparece no primeiro livro dele, foi seu presente no aniversário de 22 anos dela). Com Celan, Bachmann compartilhava o desejo de encontrar uma linguagem que, ao contrário do que dizia Wittgenstein (de quem ela era fã), ultrapassasse os limites do mundo dela, uma linguagem com a qual fosse possível falar exatamente daquilo que parecia impossível. O projeto de Celan era bastante semelhante – encontrar uma linguagem capaz de articular uma tragédia coletiva e tão monstruosa, que parecia não haver língua que desse conta.
Ela representava pra ele o algoz (e talvez sua redenção) e ele, para ela, representava, ao mesmo tempo, o espelho de uma culpa que ela não podia trazer (mas trazia) e a tal promessa do amor absoluto – aquele que se dá entre dois desiguais. Pequena nota histórica: Bachmann, que sempre questionou em seus romances o papel autoatribuído da Áustria como vítima do nazismo, não viveu pra ver quando, em 1991, o país assumiu afinal e oficialmente sua parcela de corresponsabilidade no Holocausto.
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Já que só poderíamos voltar na livraria na segunda-feira, no meio tempo fomos seguindo, o menino e eu, com o entusiasmo de dois detetives de araque, as poucas pistas que tínhamos: alguns endereços e alguns pontos onde, já na fase final da depressão, Bachmann fazia passeios por recomendação médica. Assim, passamos pela Piazza del Popolo, pela Piazza Campo de Fiori etc. Mas os pontos altos foram mesmo os lugares onde ela morou. O primeiro, Via Giuseppe de Notaris 1, foi o endereço na época que ela viveu com Max Frisch, entre Zurique e Roma, de 1958 a 1962. (Entre 1963 e 1965 ela morou em Berlim). O segundo ficava na Via Bocca de Leone 60, bem no centro da cidade, ela morou entre 1966 e 1971. Tem uma plaquinha lá, lembrando. Mas essa passa despercebida já que o prédio, localizado no centro, desaparece da paisagem por ser vizinho da Piazza di Spagna e das vitrines da Fendi, da Prada (eu mesma parei pra provar uns sapatos, ainda que não pudesse pagar por nenhum haha)...
O segundo endereço, Via Giulia 66, é onde Bachmann sofreu o incêndio, depois de adormecer com um cigarro aceso. O prédio, uma construção do século XVI chamado Palazzo Saccheti, não tem placa comemorativa. Estávamos há alguns minutos no pátio, quando o porteiro, um sujeito chamado Leslie, nos aborda perguntando o que fazemos ali. Explicamos. “Ah, de vez em quando vem gente aqui atrás dela”. Muita gente? “Não”. Por que não há placa comemorativa, como na Via Bocca de Leone? “Porque o apartamento era alugado”. Pergunto o que uma coisa tem a ver com a outra. Ele despista: “A família dona do prédio preferiu não colocar uma placa para não importunar os moradores”. O senhor não acha importante manter essa memória? “Eu não acho nada”. Podemos tirar fotos do pátio? “Não”. Mas era too late e já tínhamos tirado umas tantas, antes da abordagem pragmática do Seu Leslie.
*
Mas o que importa isso tudo, pensava eu, se estou aqui e não sinto nada; se nada daquilo que procurava ou queria sentir, quando peguei aquele avião, parece estar emocionalmente indisponível? Por que é que não fico em êxtase quando o menino acende meu cigarro; por que é que não morro a cada movimento seu, que antes causavam abalos sísmicos em mim?
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(…) não
há muito entre nada e alguma coisa,
uma coisa quer dizer não um amor
perdido, quer dizer que nada está perdido
não perder nada
tu não estás perdida.
entre Berlim e Roma
(trecho do poema Política da debilidade ou um amor perdido. No original: Politik der Schwäche oder eine verlorene Liebe)
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Na segunda-feira, voltamos à loja de Casetti. O sujeito já não se lembrava de mim, então explico o que estamos fazendo ali. A conversa se repete:
– De quem?
– De Ingeborg Bachmann.
– Aaaaah, a escritora? Não, não tenho nada sobre ela.
– Mas...
– Eu achei que você tinha falado Ingrid Bergman.
Não consegui nem ficar decepcionada. Afinal, por que procurar uma coisa que talvez não queira ser encontrada? A certa altura da viagem, eu já não sabia mais se procurava a Ingeborg, ou a mim mesma. Eu tinha ido pra Roma para ver o menino, usando como desculpa “uma pauta aí”. Mas, quando o amante só te faz lembrar que você tem um marido, qual o sentido de ter um amante? E se eu só estava ali por causa dele, qual era o sentido de fingir que eu estava interessada em outra coisa? E se eu já não tinha mais marido – portanto não podia mais ser amante de ninguém –, como fingir que eu ainda era a mesma, aquela que antes se interessava por ele? Afinal: se eu não sentia nada, que caralhos eu estava fazendo?
Fiquei pensando que, se não consigo reinventar o destinatário dos meu recibos, e não encontro um novo mito, eu vou escrever sobre o quê? Perceber que não posso escrever sobre meu marido (EX, Adelaide, EX!), para sempre me fez duvidar da minha própria capacidade de escrever. Mas a cidade permanece, e eu estou nela. É ela quem mostra um caminho na escrita, como se mostram as ruas, toda vez que acho que não sei onde estou. Preciso encontrar outro destinatário, outro motivo, como se precisa encontrar outras ruas, outros bairros, outros apartamentos. By the way, Bachmann se mudou não somente de casa, mas de apartamentos, inúmeros, nas tantas cidades que morou: Viena, Munique, Berlim, Zurique, Roma.
me finjo de morta
sem filho, sem amante,
sem rádio, sem telefone,
nesse buraco, perdida
nesse planeta, nessa
berlim.
(trecho do poema Para a central telefônica de Berlim. No original: An das Fernmeldemant Berlin)
Eu não estava perdida. O que faz de uma cidade uma cidade é exatamente o que se escolhe ver e fazer nela, e eu queria estar ali recuperando esse elo perdido – entre Bachmann e o mundo, entre mim e uma parte de mim (a amante) que eu queria que ainda existisse, mas já não estava mais lá. Porque estar ali era a comprovação de que era o fim do caso.
Eu perdi tudo, a poesia primeiro
depois o sono, depois o dia
depois tudo que tinha acontecido de dia
e o que tinha acontecido de noite, depois quando nada
mais havia, perdi mais, segui perdendo
até que menos que nada eu tinha e eu não mais
e já nada mais era,
O sertão interior tem que ser perdido
junto com os anos vividos e os lugares visitados
(trecho do poema Eu perdi a poesia. No original: Ich habe die Gedichte Verloren)
Eu fui para Roma atrás de coisas que nunca encontrei. Mas me deparei com uma cidade dona de si, maior do que meus caprichos. Diferente de mim, que precisava de alguma afirmação, de um significado externo ao meu corpo, o corpo de Roma sobrevive. Não faço a menor ideia de como foram os últimos dias de Ingeborg Bachmann na cidade. Mas entendi que, aconteça o que acontecer, a cidade permanece. E essa foi a única resposta que eu trouxe de volta.