Chega um momento na vida de todo artista verdadeiramente criador em que aflora a urgência de uma guinada nos rumos e moldes de sua criação. Como algo que pode emergir na forma de ruptura de atitudes estéticas e valores humanos até então assumidos e praticados, gerada pela forte insatisfação com o já realizado. Na outra ponta do novelo, oscila o barco sóbrio e conformista de quem irreversivelmente se ajustou às injunções e exigências diárias de um questionável senso comum, que não ensaia nenhum passo fora das rotas e trilhos de antemão concebidos.
Para a poetisa Lucila Nogueira, esse instante de novo caminhar pelo campo extenso, desconcertante e quase sempre desconfortável da poesia, se manifesta com o livro Desespero blue. É um caminho que se antecipa em outros textos, como no Livro do desencanto, quando ela se posicionava quanto a preferências artísticas e existenciais, ao escrever “Estou mais para Elis e Janis Joplin/ Florbela Espanca, eu sou Virginia Woolf” ou “tudo que em mim pareça comedido/ não passa de uma máscara de vidro”. Mesmo no livro da estreia em 1979, Almenara, essa compulsão para a liberação desejada e a frustração de não consegui-la, faz-se presente no fogo obscuro da alma “que a abismos se sabe condenada”.
Desespero blue tem sua referência estrutural aproximada a Imilce (terceiro volume da tetralogia ibérica, completada em 2001 com Amaya) pelo uso de versos entrecruzados em formas espacializadas, que propiciam mais de um modo e sentido de leitura, numa disposição visual que imprime grande flexibilidade aos poemas. A diferença de tratamento da matéria temática é flagrante: o modo classicizante e dramático de Imilce transplanta-se agora para os labirintos urbanos dos encontros noturnos e transgressivos. A impulsão feminina que não quer se deixar aprisionar pela incidência do experimentado, e por isso se desveste e despoja de todo o inquietantemente recente, incluindo-se aí a infância.
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Em Desespero blue insurge-se uma outra Lucila Nogueira, como ela mesma afirma num verso, “essa outra que descobri carregar dentro de mim”. Os poemas estão dedicados a pessoas próximas, como espelhos de uma temporalidade contemporânea fragmentária, numa partilha que contempla inicialmente os amigos e posteriormente se estende ao mundo circundante sinalizado por “todos e qualquer um” (caso de dois poemas fortíssimos, “Desespero blue” e “Feminina / Masculina”).
A dicção escolhida ultrapassa certa solidão romantizada e suportável com esforço e sacrifício, ao cantar a ausência de algo inominável e interdito: “sei que a palavra não cessa/ a dor da solidão presa no corpo/ mas sei que escrever ajuda/ porque todo silêncio é perigoso”. E também ao demitir e expor o decoro que refreou por muito tempo os sentimentos mais profundos e subliminares do lírico, no embate consigo mesma e com o outro, tão próximo quanto irremediavelmente distanciado: “porque você nada sabe da insônia/ e existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda/ e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar em tudo/ estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento súbito”.
Entre os malditos que elege em “Desdizeres”, o delirante Antonin Artaud, que suportou a França surrealista em estado permanente de loucura, “o Torturado [que] tornou-se para todos o Reconhecido”; o velho bêbado e depravado Charles Bukowski, a praguejar no poema de Lucila, dizendo aos quatro ventos da América que “a vida gira sobre um eixo apodrecido”; a delicada e deprimida Sylvia Plath, falando em tom suave e suicida para si mesma que “morrer é uma arte, como tudo o mais/ isso eu sei fazer como ninguém”.
O conjunto dos versos deste livro vem à tona com vigor, sedução e ironia, preservando, contudo, o sublime daquela voz singularizada do início. São as palavras que seguem o poeta aonde quer que ele vá, com seu léxico estigmatizado pela passagem dos dias e na retenção disponível para uso individual e intransferível. Desse ponto de vista, Lucila não se afasta radicalmente de uma fala que a transformou, em duas dezenas de livros, na poetisa de obra reconhecida e solicitada que é, utilizando-se de formas fixas, com predileção especial pelas estrofes em quadras. Também jamais renegou o sentimento de grupo (que não configura alinhamento estético), e que, no entanto, definiu sua ligação à geração 65 de Pernambuco. Geração em que se alojaram poetas os mais diversos, a maioria tendo buscado a consecução de estilo próprio no mar demasiadamente caótico de confusões, impasses, engodos e disfunções da poesia contemporânea brasileira.
Desespero blue é livro para ser curtido ao som de um B.B. King e um Eric Clapton juntos, destilando o sabor instigante de um imaginário audacioso e ainda inalcançado. Neste embalo de vozes e cordas endiabradas, a fruição violenta de suas canções e notas logra perpassar com irreverência ímpar o ar de um tempo indiferente e amorfo, banalizado e incompleto. É aí que se processa também a absorção de tais poemas sem mais contemplação passiva nem piedade atávica. Para que, na perspectiva única desse instante vivido pelo ouvinte-leitor, cheguem à superfície os meandros perigosos e as veredas subterrâneas de um mundo que se realiza no transitório de sua nudez e linguagem.